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08/02/16

repensarmo-nos é preciso! - memórias de infância

de Marc Chagall
Vivia em Viseu, numa casa que dividia um encantatório quintal com outras casas, uma coisa minúscula com uma parreira de videiras [e um baloiço!!! E um galinheiro!! E uma coelheira!! ], enfeitada de pereiras e macieiras e pessegueiros (um de cada, entenda-se...) e sobretudo abrunheiros (dois? - um, de ameixas brancas, outro de pretas...) em que passava as tardes-depois-da-escola encavalitada, quase sempre com um livro nas mãos, "Vais dar cabo dos olhos com tanta leitura, filha!", dizia-me a minha avó e eu que só ao lusco-fusco, desobediente, quando a luz escasseava definitivamente e se faziam horas de jantar, demandava a casa, a materna ou a dos avós.

Vivíamos todos por ali, e eu e os meus irmãos éramos o "ai-jesus" da vizinhança, as únicas crianças residentes nas casas que repartiam um quintal: a Rufininha e a irmã, costureiras, e as noites de um certo quarto de lua em que se ouviam os gritos, tão doce no resto do tempo, ela, a fazer-me vestidos para as bonecas que eu, mais dada a muros, mal-queria ... ; e a Amelinha e o senhor Pedro, o único casal que me faria acreditar em casamentos, já de meia-idade os dois, ele pai adoptivo de uma estória que só em sussuros, não interessa. Amava-os de paixão, aos dois, meu refúgio em fins-de-dia problemáticos até ao fim da adolescência, quando de lá saí e demandei Lisboa, tão virgem de tudo ...; e as senhoras costureiras, (a única profissão para além da da minha mãe?!) e eram umas 6 na casa grande e velha que fora dos meus avós e onde nasci, eu, elas e mais um irmão que só no fim dos dias se deixava ver, respeitável e ocupado empregado de uma loja de tecidos, único varão daquele grupo incasado, semeador de morangos e de afectos, elas. 
Um tanque enorme, comunitário, não estivesse ele sempre cheio de água ensaboada e daria uma bela de uma piscina. 
E havia um muro, fronteira e cenário das minhas aventuras, a infância formatada pelas séries dos 5 e dos 7, a Enid Blyton que os escrevia, e a personalidade, horrível, que lhe descobri por um filme, há pouco tempo, não há infâncias confiáveis! ...
E uma estória que me contou depois a minha mãe, eu criança de 2 ou 3 anos, roubando os morangos e as cenouras da terra em que os plantava a Amelinha, que, de brincadeira, se terá ido queixar dos meus verdes desvarios, e da reacção que tive, ao ser apanhada: - a Memé é má, é feia, olha, és me'da!! ... Pois ..... infâncias incompreendidas (repito, 2, 3 anos e a linguagem que mal-dominava, pois se nem merda com todas as letras.....) e as cenouras que re-enterrava, não estivessem ainda carnudas de terra ...

Ah, e claro!!!, naquele tempo da minha infância não havia televisão. (telemóveis então, ou internet, nem "in your wildest dreams"!). Os livros, meu entretenimento primeiro, ia-os buscar à biblioteca itinerante da Gulbenkian a Abraveses, uma aventura de viagens em camioneta aos arredores de Viseu, nós as duas, quase crianças e sozinhas, os molhos de 15 que líamos recomendados pelo senhor da carrinha - e era fantástico, como ele acompanhava e orientava as nossas leituras!, praticamente um livro por dia depois das aulas, eu e a minha irmã, um ano e meio separando-nos as idades, quase crianças, discutindo Os Meninos Terríveis do Cocteau ...

Quando apareceram as primeiras (televisões, pá!!), cheias de britagem e estremeços, a preto-e-branco, só nos cafés. Tempos depois também na casa dos avós, uma companhia para a velhice, ainda que quase sempre acompanhada-de-facto, as touradas tantas e o bom do cinema português da altura, os filmes de cowboys americanos e ... pasme-se!!, a música francesa. E o que o meu avô se ria apenas com a visão da cara do Aznavour, os seus dois AVCs infantilizantes, que na altura tinham até outro nome, não me lembro qual...!
Chegava da escola e entrava, a porta sem trancas, os tempos serenos, estremecidos, só, pelo menos no que ao social competia, de coscuvilhices, muitas, um ror delas, ai a mãe do Seara (esse mesmo! ...) sempre postada à janela do outro lado da rua Alexandre Herculano, controladora, "Para onde vai?", se saíamos, "De onde vem?", se entrávamos. 

Certo, certo, é que havia sempre alguém lá por casa: se não a minha mãe, os meus avós e as vizinhas com quem dividíamos o quintal. A minha mãe. A minha mãe professora, uma excepção relativamente às mulheres casadas da sua geração, maioritariamente donas de casa. E havia criadas a que, acho, não se pagava sequer salário, a "cama e mesa e roupa lavada" garantida, a fome que se matava das quase-crianças roubadas à aldeia, as famílias que, explicaram-me, pediam que as levassem, que as "criassem", daí o nome. E penso, como é possível?, Criadas com o ordenado de professora? Eu sem mesada nem semanada nem nada, os bolos que as minhas amigas compravam depois do liceu (no Horta ou no Santos) sem que as invejasse? E quem sabe, é por isso que não gosto de doces, ainda hoje? ... Como podíamos, nós, classe ... quê?, média-baixa? .....

Era o meu avô que tinha dinheiro, a minha mãe professora primária e ganhando uma miséria, ainda assim tendo que mentir para casar, o meu pai ainda mais mal pago do que ela, e o Salazar que controlava estes devaneios e protegia os seus funcionários! Tempos de FNAT, quem se lembra? Pois, o meu avô, e não se ponham já a pensar em fidalguias, nada disso! O meu avô, filho ilegítimo de pai "incógnito" (oh, sim, esses "maravilhosos" tempos do fascismo, agora meio-branqueados!) O meu avô materno, que o paterno nunca cheguei a conhecer, a ida para aquela miragem africana e a mulher abandonada, o filho tão pequeno que só por retratos lhe sabia a memória e bem afectado se (des)encontrou, vida fora ... Será que te deste conta, tu, do mal que fizeste? Do que a tua ausência sem notícias provocou, em ondas que me atingiram, tantos anos depois?

O meu avô-materno, então, o que nos sustentou a todos, filhas, netos. Que abraçou a carreira militar que lhe proporcionou estudos. Que chegou a tenente, coisa pouca, ainda assim extraordinária. Que, nascido paupérrimo, venceu na vida fazendo várias comissões em Moçambique, essa Ilha ilusória que a minha mãe havia de demandar muitos anos depois, procurando hipotéticos irmãos. (mãe, como pudeste tu, entre todas as outras - admitir, desculpar....?!) O meu avô que amealhou poupanças e abriu uma loja de materiais de construção, fonte do nosso estar-assossegado. O meu avô alicerçado naquela mulher dura e "direita" e rija, a sub-condição assumida mas ainda assim, os sorrisos de que não me lembro, nem uma vez. A minha avó-presente, o cabelo tão forte que partia pentes em vãs tentativas de domá-lo. A minha avó que sofria da asma que herdei apenas eu, os ataques que abrandavam quando o marido, noites de horas tardias, voltava a casa.

Único devaneio "despesista" dos dois, velhinhos ambos, a tal televisão. Morreram com diferença de um ano, aos setenta e poucos, acompanhados, a filha e o genro e os netos e os vizinhos, tantos, solidários, presentes, o quintal que os unia.
As tardes de 'bisca' com ele e contigo, irmão-agora-imigrado.
A morte. Assistidos, os dois, nem imaginário de lares, o que fosse, a família, várias gerações partilhando a vida, ali, naquela casa que dividia um quintal ...

Hoje. Famílias dispersas. Crianças sozinhas, velhos sozinhos. Em vida, na morte, descartados, todos...
........ e segue para novo post, brevemente  .....

1 comentário:

Anabela Magalhães disse...

Lindo o teu texto. Que espelha uma desumanização crescente... :(