- as imagens das colunas laterais têm quase todas links ..
- nas páginas 'autónomas' (abaixo) vou recolhendo posts recuperados do 'vento 1', acrescentando algo novo ..

livros

esta página é sobre livros que li  .. coisas que fui pondo no blogue da biblioteca da escola (ESAGBIB), depois no 1.º 'vento', e que vou transpondo para aqui devagarinho..

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pandora and the angelic darkness ..
6.2.2010


O romance de Richard Zimler (The Angelic Darkness /  Trevas de Luz, 1998) , e o filme de James Cameron (Avatar, 2009) cativaram-me, comoveram-me, pela mesma razão: o resgatar da possibilidade. 
A possibilidade de retorno a uma inocência primordial, a um mundo novo; a possibilidade do despedir-se de si , 'eu'-gaiola, prisão. A possibilidade de, enfim, nascer de novo. redesenhado, limpo, espantado de existir. a vida toda oferecendo-se futuro, descoberta, branco.
[ não sei por que escolhi a imagem acima, entre todas as possibilidades. chama-se 'le vent'.. ]

Há, no romance e no filme, uma aprendizagem, uma viagem para dentro que conduz os personagens principais a uma redescoberta, um aceitar-se, um querer-se outro: em Trevas de luz, a consciência / vivência da homossexualidade, em Avatar, a rejeição da predadora condição humana, o regresso ao mito do bom selvagem. São viagens penosas, semeadas de escolhos e de escombros: "tens de passar pelo inverno para chegar à primavera" (Trevas de Luz) - que nos envolvem, leitor, espectador, como uma pertença, cada um levando a cabo a sua própria viagem. E a possibilidade, a possibilidade! .. voltarmos outro, começar de novo..

E depois há o maravilhoso que perpassa pelo livro, pelo filme, improváveis anjos visitando-nos o caminho,   árvores  mágicas capazes de desvendarem  histórias, sementes que são almas e voam, a floresta-mãe, o início dos tempos. 
E há o sonho, criador de vida, construtor de memórias. Há a enigmática natureza das aves, " seres tão sagrados que as suas almas não podem estar acorrentadas à terra, por isso têm asas." (Trevas de Luz)
Há a beleza inquietante de Peter-andrógino, Peter-anjo, português de Angola. E há o povo azul de Pandora, comungando daquela natureza intocada, deslumbrante, a recordação idealizada e índia, o primitivo ansiado,  perdido, e o homem que louco, insaciável,  burro, 'matou a mãe', o planeta terra agora sem verde. 
E há a dança e a vertigem dos pássaros, cavalgados de azul.
Há a dança, a aprendizagem primeira.
A dança-libertação, a transfiguradora dança, sufi-swirling num ritual de apagamento, morte, vida. 
A Fénix renascida, eles, possivelmente, eu.


4/2009

O Cantor de Tango


É um livro de um escritor argentino chamado Tomás Eloy Martínez, e uma óptima ocupação para as férias da Páscoa.

De Tomás Eloy Martínez, sei apenas o que li nas badanas do romance: que actualmente é escritor residente numa universidade dos EUA, e que, em 1934, nasceu em Tucumán, a mesma terra argentina da cantora e activista política Mercedes Sosa.
Que ganhou inúmeros prémios e que publicações de grande prestígio "consideram o conjunto da sua obra como o fenómeno literário mais importante desde Cem Anos de Solidão". Sei que a sua escrita é limpa e flui, e nos conduz com prazer da primeira à última página. Que há um quê de romance policial nesta sua história, pela linguagem escorreita, despida, mas também pelo mistério que envolve personagens e lugares.

Em O Cantor de Tango, um académico americano parte para Buenos Aires numa espécie de compulsão, ou como se tivesse de cumprir um destino. Vai em busca de um cantor lendário (melhor que Gardel..), numa demanda que cruza os caminhos percorridos por J.L. Borges, as suas vivências/referências, o misterioso Aleph: objecto mítico, capaz de desvendar o futuro. 

Numa espécie de busca do Graal em duplo (o cantor Julio Martel e o Aleph) , o personagem principal, Bruno Cadogan, conduz-nos através de uma cidade múltipla, enganadora e labiríntica: nas suas ruas de multiplicados nomes, nas suas memórias mais recônditas.

É uma Buenos Aires que se vai desvendando em camadas de tempo: esquinas improváveis que contam histórias de um passado de horrores que a voz única e solitária de Martel evoca e resgata do esquecimento, como que inscrevendo cruzes num mapa ferido da morte e do sangue das vítimas anónimas dos tempos da ditadura.
Mas é também a Buenos Aires dos dias e das noites conturbadas do ano de 2001, das manifestações diárias, dos sucessivos governos, do tempo da recessão económica com que a Argentina mergulhou - profunda e talvez irremediavelmente - no século XXI.

E é o retrato de uma população. Que se rebela, se redefine, se adapta: os 'portenhos' (os naturais de Buenos Aires) continuam a ler sofregamente, mas já não compram livros, como no tempo em que donas de casa adquiriam, com a mesma naturalidade, um molho de alfaces e as edições de Rayuela e dos Cem Anos de Solidão. Agora vão de livraria em livraria (que as há, a par com salões de baile, em grande número e sempre cheias), lêem um ou dois capítulos em cada uma delas .. sinal dos tempos, e o esboço dorido e no entanto resistente, das gentes de Buenos Aires, da sua cidade em convulsão.

O Cantor de Tango é um romance que se lê com o prazer das descobertas, com a excitação de quem vive a História a acontecer. Ou, como referiu o jornal The Guardian: "Um romance estimulante e pungente, com um ritmo libertador tão hipnótico como o próprio tango."


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1/2009

acabei de ler o apocalipse dos trabalhadores, de valter hugo mãe (pois.. tudo em letra pequena, que ele não gosta de maiúsculas!:-)). tempo, então, de me sentir órfã, como sempre acontece depois que uma obra maior me agita e desassossega, me preenche, me adopta.
  • não sei se é a fluidez da escrita, o registo oral parecendo fácil assim transposto, a natural integração dos diálogos, numa técnica que me soa ‘saramaguiana’.
  • o carácter agridoce dos seus personagens, tão vulgares, simultaneamente, tão sublimes.
  • a criatividade, a imaginação deliciosamente delirante.
  • ou se é a transgressão formal, a pontuação reduzida ao mínimo, praticamente só vírgulas e pontos.
  • será antes, talvez, a capacidade invulgar de elevar um quotidiano cinzento a uma claridade de nuvens. de transportá-lo ainda além, até às portas do céu: uma praça pejada de vendedores ambulantes (uma rebaldaria), onde a maria da graça espera grita insulta desespera, e o são pedro, casmurro: vai-te embora, mulher, não entendes que não vale a pena morrer de amor.
  • será, também, o desfazer da lógica que, simples, se torna evidência incontornável. ou o humor posto assim, naturalmente, na ‘pessoa’ de um cão chamado portugal: cala-te, palerma, onde é que já se viu um país a ladrar.
  • ou então, o amor a-final da quitéria tornada indefesa pelo toque desse homem que se desiste máquina, desse jovem ucraniano (sete milhões de mortos de fome nas décadas de 20 e 30 do século vinte, sabiam? ..), desse andriy filho de ekaterina farol-casa-parede-mestra, cansada ekaterina, ekaterina desmaterializando-se, andriy filho de sasha-louco: imagina-me sorrindo, filho.
  • os personagens expondo-se, inteiros, e nós entrando-lhes dentro. e eles insinuando-se, entranhando-se. e corrompendo-nos, como o maldito-amado-senhor-ferreira à mulher-a-dias maria da graça: ensinando-lhe goya, os artistas que são capazes até de surpreender o criador. e o requiem de mozart, o volume posto no máximo, anunciando-lhe a despedida, emoldurando-lhe a final celebração.
só a paixão pode, num momento de afinidade com a vontade de deus, resultar numa obra tão impossível, e isto é fernando pessoa. ou, como diz o próprio vhm, "uma escrita por dentro da pele". é esse, certamente, o segredo, o fascínio deste romance. isso, e o amor imenso que dessa escrita se desprende. a cada folha lida, partilhada, volatilizando-se. contaminando-nos. porque o amor não cabe quieto no espaço tão pequeno que é o corpo de uma mulher. no de um livro também não.

obrigada, valter hugo. e que venha um romance novo, depressa, urgentemente.


todas as frases em itálico são transcrições de 'o apocalipse dos trabalhadores'




uma entrevista ao autor, aqui

al , 29.01.09




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Kafka à Beira-Mar

É um romance do japonês Haruki Murakami e o personagem principal adoptou o nome Kafka, que, na sua língua, será o equivalente a 'corvo'.. nada, portanto, que tenha a ver com o checo Franz Kafka ..
Um dos mais populares escritores japoneses, Haruki Murakami nasceu em Kyoto em 1949. Cresceu em Kobe, cidade portuária que lhe rendeu uma visão de mundo cosmopolita, um dos pilares de sua obra. Seus dias de universidade foram caóticos e intensos, incluindo uma participação activa nos protestos contra a guerra do Vietnam. Formou-se em dramaturgia clássica no Departamento de Literatura da Universidade de Waseda. Pouco depois, montou um bar em Kokubunji, Tóquio, sobre o qual diria mais tarde: “Tudo que preciso saber na vida aprendi no meu bar de jazz.” fonte

Terá sido essa paixão pela música que explica as saborosas 'lições' que atravessam o romance e que vão transfigurando e enriquecendo personagens à partida mais débeis, dir-se-ia 'brancos', ou 'intocados', personagens 'na margem' .. e que vão absorvendo conhecimentos sobre música, literatura, pintura, filosofia .. o evidente pendor didáctico de Murakami, e a cultura assumindo uma função transformadora, e, em certa medida, redentora ..

Kafka à Beira-Mar é um daqueles livros que nos tira horas de sono, que não conseguimos parar de ler. O fascínio deriva do carácter dos personagens, por um lado, do factor suspense e de uma estrutura quase de romance policial, mas também (acho que sobretudo) da variedade de registos - dir-se-ia que dispostos em camadas - e que Murakami manipula com o à-vontade de um prestidigitador ..

Ao ler Kafka à Beira-Mar senti-me várias vezes transportada a memórias de outras leituras, de "As brumas de Avalon" à "Alice no País das maravilhas". Há neste romance incursões pelo maravilhoso, pela teoria das cordas e a física quântica, a tradição celta de endeusamento da natureza-mulher e mãe, a teoria da reencarnação..
Tudo eivado do mistério de uma cultura que reconhecemos alheia e de que não percebemos todos os contornos, mas que acaba por ser um factor mais de encantamento. Encantamento que passa pela estranheza, a doçura, a poesia dos personagens - todos eles à margem da lógica e do previsível, todos eles enredados em turbilhões de mistério, de sentimentos obscuros, e marcados pelo determinismo.. assim como as personagens trágicas dos clássicos gregos. Tudo muito rondando, também, o universo mágico dos contos infantis.
E, no entanto, Kafka à Beira-Mar é um romance bem adulto, ousado, sensual, e quase chocante na naturalidade com que assume comportamentos marginais.
  • Em Kafka à Beira-Mar há um velho deficiente mental que fala a linguagem dos gatos (seus únicos amigos..) , mais tarde também a das pedras.. Que provoca chuvas de peixes e sanguessugas e tem um destino a cumprir.
  • Há uma pedra mágica que abre (e fecha) portas para outros mundos, se alguém lhe souber 'falar'..
  • Há bosques encantados - lugares de definição e de ensinamento - que encerram os mistérios da vida e da morte..
  • Há fenómenos extra-terrestres, mortos que convivem com os vivos em mundos paralelos.
  • Há improváveis personagens de ficção que ganham vida, se transfiguram, têm o dom da ubiquidade e da omnisciência
  • Depois, há "o rapaz chamado corvo"- um misto de grilo-consciência de Pinóquio, super-ego, anjo protector.
  • Há assassinatos e relações que não chegamos a perceber se incestuosas, sonhos proibidos e acusatórios.
  • E há um jovem de 15 anos: "o rapaz de 15 anos mais forte do mundo" que, no dia do seu 15º aniversário, adopta o nome de Kafka e foge da casa do pai para escapar a uma profecia-maldição. Parte também numa demanda: da mãe que o abandonou em criança, da irmã que só conhece de uma velha fotografia, ela e ele, numa praia de que não se lembra. Parte, em última análise, numa busca de si ..
  • Há, depois, uma acolhedora biblioteca: refúgio e lugar predestinado, onde hão-de convergir todos os destinos, onde se cumprirá aquilo que tem de ser cumprido.
  • E há a misteriosa mulher que a gere. Que espera o dia da sua morte pressentida e desejada. Que passa os dias a livrar-se das suas memórias, escrevendo-as para que alguém as queime depois.
  • Há o seu assistente: um jovem erudito e sábio, com sentimentos de homem num indefinido corpo de mulher.
  • E há um quadro e no quadro um jovem sentado na areia: Kafka à beira-mar.
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comentário de Oblige * ..
Segunda-feira, 06 Outubro, 2008


*.. é o 'nome' de uma pessoa que me deixou um comentário num post sobre o "Ensaio sobre a Cegueira", de José Saramago .....  Foi em 2008, quando este blogue tinha outro nome e se inseria num projecto de biblioteca escolar .. até ser censurado ..
Acho o comentário de uma lucidez .. que dói.

«Gostaria de comentar esta reacção dos americanos com base na opinião de um personagem do livro chamado "Kafka na margem".
Fala das "pessoas ocas", incapazes de admitir que erram ou de saber sequer o que é um erro. Estas têm por hábito atacar, sem necessidade de motivos válidos, aquilo que desconhecem.
Porque não tendo nada dentro, qualquer ideia que alguém lhes ponha será suficiente para as levar a agir, a atacar.
Como se costuma dizer nos filmes de série B americanos, pessoas que "disparam primeiro e fazem perguntas depois". Cegos que não vendo, não podem ver.
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(...)
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Podemos pensar que estamos no inferno sem o saber, mas é mentira. Sabemos que estamos no inferno e gostamos.


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7/2/2009

a literatura, as paixões: La Catedral del Mar 



É um livro apaixonante, daqueles por que [assim mesmo, separado = pelos quais] apetece regressar a casa … O romance (que já vai na 36ª edição) chama-se “A Catedral do Mar” e o seu autor, um espanhol, leia-se,... catalão :-) de Barcelona: Ildefonso Falcones
Falcones faz um retrato empolgante de uma Catalunha medieval assolada por conflitos feudais, pela guerra, a peste, a inquisição… Os personagens principais acabam por ser o Povo – sofrido e ao mesmo tempo heróico, e a sua cidade condal, Barcelona, que, como uma mãe, acolhe e dá estatuto de cidadãos livres a quantos se refugiam no seu seio.
Assim um cheirinho a “O Memorial do Convento”, do Nobel português (que lucidamente se mudou para Lanzarote) José Saramago, e a “A História do Rei Transparente”, da madrilena Rosa Montero.

'encuentros digitales' com o autor: aqui


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Autópsia de Um Mar de Ruínas, de João de Melo:
um romance visceral, 'dorido e doloroso', a um tempo belo e cruel. A palavra em carne viva, a memória enferma da guerra colonial em Angola, onde (citando Nuno Bragança) "foi - para salvar vidas." Um livro que dói como uma perda, ou uma pedra. Um livro que não conseguimos - que não podemos - deixar de ler.


-- uma carta lindíssima :

À da Canda, amor, aos morros do Seixel vai demoradamente fixar-se a amargura das noites de guerra. Calambata, sabes?, é uma trégua fuzilada, um morto que não morre mas adormece. Aqui o tens vivo, as mãos fechadas sobre a sua metralhadora. Pior do que estar de sentinela, pior que tudo são as chamas ao longe, os olhos que me vigiam. Sente-se um homem espiado pelas próprias árvores, ouvindo carrilhões impossíveis na calada da noite. Escrevo-te, amor, por não saber nem o dia nem a hora. Com o medo de estar apenas vivendo à beira do medo. Que escrevo. Colunas partem à Magina, recebem de volta a notícia dos ataques aos quartéis do Norte, o M'Pozo, a Mama Rosa, a Madimba, o Luvo, e a gente pensa que há-de ser um dia também a destruição de Calambata, amor. Amor, diz-se já que Calambata é apenas o som da nossa respiração: ama-se a vida devagarinho, como nos repugna o cheiro a bálsamo dos mortos que partem a qualquer hora do dia. Palavras dispersas pingam da infusa do silêncio. Palavras. As palmeiras, por exemplo. Os imbondeiros, as mulembas. Perderam a memória dos séculos. Um dia, amor, as armas serão somente objectos de museu: os campos hão-de lavrar-se com charruas, nas oficinas trabalharão bigornas, puas, enxós, o esmeril das mãos que nos combateram, e a piaçaba dos cabelos encher-se-á da poeira das madeiras, nas serrações. Era bom, amor, que se ouvissem os guindastes nos cais, os alcatruzes das noras, o uivo do vento nas grandes searas do Sul. Bom que o mar erguesse a voz um pouco acima do sal até à alegria das lágrimas. Amor, é provável que não existam brancos inimigos nas picadas de Nambuangongo. Os brancos não podem, amor, continuar, aqui nas serras da Calambata, a alimentar a morte das minas, dos morteiros e dos canhões. Será chegado o tempo, de se cobrirem as crateras das granadas, de despoletar os trilhos, de pintar os furos das balas no corpo das árvores da Binda. Por isso te escrevo, amor, antes da minha morte. Nunca pisei uma lavra de milho ou mandioca, sabes? Escrevo. Não chicoteio o suor do negro da tonga. Não troco meu sapato velho, minha cerzida camisa, meu garrafão de aguardente, pelo corpo da menina no alembamento. Escrevo, amor: reconstruí vós as sanzalas de quantos se foram embora, para que possam ainda regressar, viver. Pergunta-lhes por mim, amor. O que fazia. O que inventava por vezes. O que escrevi eu aqui. Que branco caçambuleiro esse, que diferente estava me chamar ainda? Que branco esse, polícia lhe tinha raiva, lhe estava sempre xingar a voz da denúncia, quase mesmo ia caindo na prisão do esquecimento? Que branco, amor? Minha pele tem o ardor das anchovas da ração de combate, da pasta de fígado (os perseguidos guerrilheiros sul-africanos, lembras-te, amor?). Mas tudo isso eu fui trocando pelo desejo e pelo gosto da moamba de galinha e pelo ácido do abacaxi com pancadinha discreta na curva do ombro, como a dizer: coragem!
É o que escrevo aqui, sentado na noite. No sítio onde estou, amor. De frente para os morros que cercam Calambata cercada de guerra pelo Norte. A pensar, amor, que há em mim um morto que não morre.

in Autópsia de Um Mar de Ruínas


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Rayuela significa 'jogo da macaca' (em português do Brasil, 'jogo da amarelinha'). A editora Cavalo de Ferro, que publicou este livro de Julio Cortázar, deu-lhe o nome de 'O Jogo do Mundo' e publicitou-o assim:

A publicação de «O jogo do mundo» (Rayuela) em 1963 foi uma verdadeira revolução no romance mundial: pela primeira vez, um escritor levava até às últimas consequências a vontade de transgredir a ordem tradicional de uma história e a linguagem usada para a contar. O resultado é este livro único, cheio de humor, de risco e de uma originalidade sem precedentes.

Considerado o romance que melhor retrata as inquietudes e melhor resume o Século XX na visão latino-americana do mundo(...) , gerações de escritores são, de uma maneira ou de outra, devedoras de «O jogo do mundo»

Já aqui (no blogue esagbib) fiz referência às transgressões (*) de Cortázar, presentes neste romance. Fica aqui, agora, um excerto que vos leve a entendê-lo, a querer-lhe para além (ou apesar) delas.. e, acreditem, seleccioná-lo, abdicar de uma imensa lista de excertos, ñ foi fácil..

(*) ver 

-- a Poesia de Cortázar :

Toco a tua boca. Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha.
início do capítulo 7, "O Jogo do Mundo", Julio Cortázar

al, 20 /12/ 08


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postado por AL em 2/11/2008, no que era então o 'ESAGBIB' ..
 
Em vésperas de eleições nos Estados Unidos, a sugestão de uma leitura:
Man in the Dark (clicar para ver sinopse, etc), um livro do escritor americano Paul Auster.
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Numa estória dentro da estória, há um homem que, nas suas noites de insónia, vai imaginando, construindo uma América 'alternativa', cuja História começa no ano 2000, logo após a eleição de Bush. Revoltados com o resultado das eleições (em que Al Gore, reunindo mais votos, é, no entanto, derrotado - lembram-se daquelas contagens e recontagens?), os Estados começam a declarar a sua separação da União. O primeiro, claro! (ver em baixo porquê - 'claro' ) é o de Nova Iorque. Outros 15 se lhe seguirão e a América está em guerra. Nada de novo, só que, desta vez, não com o mundo, mas consigo própria.
Neste mundo paralelo, o 11 de Setembro (2001) nunca aconteceu. As torres gémeas continuam de pé. Não houve a invasão do Afganistão. Não há guerra no Iraque. «Há uma guerra civil em que se disparam sobretudo ideias, e que se leva ao limite». Mortíferas, tão devastadoras como balas. Ler aqui a entrevista do autor ao El País: - interessantíssima, elucidativa: «Nos EU há dois mundos que não comunicam entre si!»

O tema deste romance de Paul Auster 'nasce' de um inconformismo, uma não-aceitação do 'estado das coisas', no seu país: «Há oito anos, desde o golpe de estado legal que derrotou Al Gore, que sinto como se vivesse num mundo paralelo que acabou por tornar-se real, e tudo só tem vindo a piorar!»
Não é casualidade que a guerra civil de Brill (o 'homem no escuro') comece com a independência de Nova York. «E não é piada: há muita gente que pensa que NY deveria ser um Estado independente; tanto que, após o 11 de Setembro, houve uma revista de poesia que escreveu, na 1ª página: 'USA out of NYC'; muitos outros odeiam NY pelo que representa, com 40% da população vinda de fora...».


O livro, interessantíssimo, não está ainda traduzido em Portugal. Encontram-no na Fnac (ou podem encomendá-lo aqui ) na versão original. O Inglês é muito acessível. E .. recomendo-o vivamente! Vão ver que o lêem de um fôlego!:-)

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