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07/03/15

Cidadão imperfeitíssimo


in Expresso Diário
06/03/2015

por  Nicolau Santos


Cidadão imperfeito, primeiro-ministro mais do que perfeito 


As dívidas ao fisco e à segurança social são como as pastilhas elásticas: quando se colam aos sapatos é muito difícil arrancá-las. Quando se colam ao caráter, os estragos ainda são maiores. A credibilidade fica para sempre suja e pegajosa e nada a volta a ser como era. Fora da sua carreira política, Pedro Passos Coelho nunca trabalhou – mas tinha um emprego. Presidia ao Centro Português para a Cooperação, uma ONG concebida pelo Grupo Tecnoforma para obter financiamentos comunitários destinados a projectos de formação e cooperação. Nunca de tal atividade saiu nada que se visse – a não ser despesas de representação que foram pagas a Pedro Passos Coelho. E dessa insana atividade profissional também saíram chatices, que são agora do domínio público.

Pedro Passos Coelho tem-se desdobrado por estes dias em declarações sobre as suas dívidas à Segurança Social e ao fisco, entretanto regularizadas. No primeiro caso, afirmou que embora informado do caso em 2012, pretendia resolvê-lo apenas quando saísse do Governo em 2015, para não ser acusado de estar a ser beneficiado. A primeira novidade é que Passos considera que vai deixar São Bento este ano. É uma grande revelação. A segunda novidade é que se pagasse agora a dívida podia ser acusado de estar a ser beneficiado. De quê? Como? Porquê? Infelizmente, o primeiro-ministro não nos brindou com a explicação do seu brilhante raciocínio, pelo que ficamos privados de o poder acompanhar nesse fulgurante pensamento.

O primeiro-ministro Pedro Passos Coelho tem um discurso alemão mas práticas muito portuguesas. Uma ética para os outros e uma moral só para si. Tem um discurso perfeito mas ele não é perfeito. Compreende-se: assim é mais fácil de governar sem problemas de consciência. 

Eis, contudo, que, pressionado pelo jornalista José António Cerejo, do Público, o primeiro-ministro decidiu pagar já. E depois disso desdobrou-se em declarações, umas a apelar à nossa condescendência – «não sabia que tinha de pagar, pensei que era uma opção, muitas vezes me atrasei em pagamentos, ninguém espere que eu seja um cidadão perfeito» – outras a tentar demonstrar que as suas imperfeições não são assim tão graves quando comparadas com as de outros – «nunca me servi do cargo de primeiro-ministro para esconder ou ocultar ou ter um tratamento diferente de qualquer outro cidadão, para pagar favores ou para viver fora das minhas possibilidades» – e outras ainda a tentar que tenhamos pena dele – «atrasei-me por distração e por falta de dinheiro».

Qualquer cidadão apanhado em dívidas ao fisco e à Segurança Social pode invocar o que disse o cidadão Pedro Passos Coelho. Mas o cidadão Pedro Passos Coelho que agora invoca todas estas razões é, infelizmente para ele, o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, o mesmo Pedro Passos Coelho que desde Junho de 2011, quando chegou ao poder, não se cansou de fustigar os seus concidadãos não só com discursos moralistas – «vivemos acima das nossas possibilidades, gastámos o que não tínhamos, só saímos disto empobrecendo» – como com brutais medidas de austeridade, desde a enorme subida de impostos até cortes profundos nos salários e nas reformas, passando pela devastadora fragilização dos apoios sociais do Estado até à precarização das relações laborais e à esmagadora pauperização da classe média.

Por isso, o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho não tem desculpa. Durante não um, não dois, não três mas pelo menos durante cinco anos não descontou para a Segurança Social, contra a qual adotou o discurso da insustentabilidade para reduzir drasticamente as pensões gerais e as da Caixa Geral de Aposentação. Durante não um, não dois, não três mas pelo menos cinco anos também se atrasou a entregar o IRS. E desde que está em São Bento que nos serve, dia sim dia sim, um discurso de virtudes austeritárias que agora, conhecidos estes factos, são de um grotesco mau gosto.

Desde 2011 que o primeiro-ministro nos culpa pela crise e nos diz que nós todos, os seus concidadãos, é que somos os responsáveis pela tsunami que atingiu o país. Porque gastámos demais em coisas supérfluas. Porque viajámos demais. Porque fomos a espetáculos ou exposições demais. Porque comprámos carros e casas e televisores demais. Porque nos endividámos demais. Nós somos os culpados. Nós temos de expiar as nossas culpas. E Passos Coelho foi o primeiro-ministro, ascético e cumpridor, que desceu em Belém para nos libertar dos nossos pecados consumistas, para que aceitemos viver com o pouco que temos, para que nos conformemos de novo com a apagada e vil tristeza a que temos direito.

Fosse este o país que o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho nos traça nos seus discursos e o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho já deveria ter apresentado a sua demissão. De forma imediata e irrevogável. Por razões muito semelhantes, outros governantes o fizeram no passado. Mas o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho tem um discurso alemão mas práticas muito portuguesas. Uma ética para os outros e uma moral só para si. Tem um discurso perfeito mas ele não é perfeito. Compreende-se: assim é mais fácil de governar sem problemas de consciência.

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