06/02/2014,
por Manuel Loff *
No centenário da I Guerra Mundial, estamos a regressar à revolução conservadora que se começou a preparar nos anos que a precederam.
Revogação do direito à interrupção voluntária da gravidez por livre
decisão da mulher em Espanha. Novas manifestações em França contra o
casamento de pessoas do mesmo sexo. Legislação homofóbica na Rússia e na
Hungria. Em Portugal, tentativa de levar a referendo o direito à
coadoção por casais do mesmo sexo. Avanço das direitas religiosas nas
Américas, apostadas em reverter legislação favorável ao direito de a
mulher decidir sobre o seu corpo e a impedir quaisquer novas mudanças na
conceção legal de família.
Que fantasma é
este que percorre sociedades em que se vive um profundo mal-estar
social, quer quando provocado pela desigual distribuição de nova
riqueza, ou pelo agravamento brutal da miséria nas economias, como a
nossa, sujeitas a formas renovadas de abuso e exploração?
Desengane-se
quem pensou que era irreversível o caminho percorrido para chegar à
igualdade entre os sexos, à emancipação das minorias de orientação
sexual. Atente-se na coerência do processo histórico que estamos a
viver: se há 30 anos temos desandado no caminho da igualdade social, é
natural que comecemos a desandar no da igualdade sexual e reprodutiva.
Em
Espanha, o governo de direita prepara uma regressão de 30 anos na vida
das espanholas, proibindo o aborto, que passa a ser permitido apenas se
“existir perigo importante e duradouro" para a saúde física ou psíquica
da mulher ou para a sua própria vida; e, no caso de violação, apenas se
esta tiver sido previamente denunciada à polícia e apenas nas primeiras
12 semanas. A mulher deixa de poder livremente pedir para interromper
uma gravidez mesmo que se comprovem malformações evidentes no feto, a
menos que estas comprovem uma "anomalia incompatível com a vida", e
sempre sujeita a condições muito complicadas. O autor da proposta é o
ministro da Justiça espanhol que pronuncia disparates ofensivos como o
de que “a liberdade da maternidade é a que faz as mulheres serem
autenticamente mulheres” (El País, 28.7.2012) – idêntico ao
discurso dos bispos portugueses (todos homens!) sobre a “vocação à
maternidade” na qual querem continuar a fechar as mulheres, julgando-se
preparados para falar da “especificidade feminina”, da “perda da sua
identidade” que julgam estar hoje em causa (Carta Pastoral da
Conferência Episcopal Portuguesa, CEP, 14.11.2013). Obrigá-las a ser
mães contra a vontade parece ser, pelos vistos, uma forma de reforçar
essa identidade...
Em França, direita católica e extrema-direita
saíram juntas à rua no domingo passado contra o casamento homossexual
aprovado há menos de um ano. Acham que o governo é “familiofóbico”, “que
continua a inclinar-se perante o lóbi LGBT [lésbicas, gays, bissexuais e
transgéneros]”, contra a “indiferenciação sexual”, contra essa “cadeia
infernal” que constituem “a contraceção e o aborto” (Le Monde, 2.2.2014).
Na Rússia, legislação abertamente hostil aos homossexuais é imposta como forma de resistência, diz-se, à emergência de hábitos estranhos à sociedade, que ofendem a identidade russa. Como se os gays russos o fossem por imitar uma moda estrangeira, ou simplesmente viessem de Marte!
Identidade em vez de liberdade, invenção da tradição em vez de discussão racional dos problemas, moral em vez de política. No centenário da I Guerra Mundial e da inauguração da era do massacre, estamos a regressar à revolução conservadora que se começou a preparar nos anos que a precederam. Retoma-se o discurso rançoso de um sentido eterno da vida que se diz resultar da natureza, movido pela mesma rejeição do racionalismo que tomou conta dos antidemocratas de há cem anos. Todas estas direitas populistas, religiosas, neoconservadoras, estes reacionários de todas as cores que se lançam agora no combate contra a liberdade sexual e moral de quem procura (todos nós, afinal) a felicidade e a soberania na sua vida afetiva e reprodutiva, são os mesmos que há cem anos se lançaram contra a emancipação dos judeus e das minorias religiosas e étnicas, abrindo caminho direto para o fascismo e a perseguição racista. Esta gente atribui hoje o combate pela igualdade a complôs de lóbis gay ou de feministas que terão tomado conta das escolas e dos próprios governos, como antes se responsabilizavam os judeus. Os argumentos são hoje mais cuidados: a mesma Igreja que militou teimosamente, durante séculos, contra a plena cidadania das mulheres, que, na recusa da ordenação destas, se funda sobre a desigual dignidade de homens e mulheres, admite agora que “a mulher, não raramente, foi vítima de forte sujeição ao homem e sofreu alguma menorização social e cultural” (que fantástico eufemismo!), achando que, “graças a Deus, tais situações estão progressivamente a ser ultrapassadas” (Carta Pastoral..., 14.11.2013). Não graças à Igreja, isso de certeza! De autocrítica nem sombra!
Queixam-se os bispos
de uma “autêntica revolução antropológica” que, segundo eles, estará em
curso, e que “reflete um subjetivismo relativista levado ao extremo”. O
que é visível é quererem lançar-se, de armas e bagagens, nesta nova
revolução conservadora, arremetendo contra “esta época promíscua e
lasciva” (J. César das Neves, DN, 13.1.2014). Tresandam ao
tradicionalismo irracionalista de uma época, essa sim, feita de
violência depuradora e tragédia universal.
*Historiador
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