por António Pinho Vargas *
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Não usei nunca na vida a palavra "sustentatibilidade". No entanto sou obrigado a ouvi-la e a lê-la quase todos os dias nos últimos anos. Quando uma palavra nova se dissemina desta forma, normalmente isso quer dizer que o novo conceito corresponde a uma nova política, como é o caso. De súbito, no contexto da crise, tudo passou a ser visto como necessariamente "sustentável" ou o seu contrário. O que esse conceito significa é que tudo se deve pagar a si próprio e, portanto, algumas coisas a que se destinavam os impostos no passado passaram a ser vistas de outro modo. Queres saúde pública? Queres educação pública? Então terás de pagar. Quero lançar um ataque de significação massiva a esta leitura dominante.
Muitas outras coisas poderiam ser objecto do neologismo. Por exemplo: alguma vez a execução de uma sinfonia de Mahler ou de Bruckner poderá ser "sustentável"? Nunca. Para isso acontecer o bilhete teria de custar talvez mil euros por pessoa. Todas as orquestras sinfónicas do mundo, todos os teatros de ópera do mundo são insustentáveis por definição. Não tentem disfarçar. Podemos esperar que, mais tarde ou mais cedo, um qualquer mentecapto neoliberal irá aparecer com esta conversa. Mais valia que o fizesse já para se perceber nos meios culturais o seu significado pleno, para além do seu uso demagógico quotidiano.
Mas há muito mais coisas insustentáveis e este é o aspecto fundamental do lance ideológico oculto de direita.
Por exemplo, o salário de 40 mil por mês de Catroga, os salários em geral dos gestores das grandes empresas, dos banqueiros, etc. Todos são insustentáveis face à decência, face a qualquer noção de bem comum ou de redistribuição justa da riqueza, de uma ideia de um mundo comum e plural. Mas nunca é para estes casos que a palavra é usada. Os políticos do capitalismo - que é que eles são? - partem do princípio que nisto não se mexe, que não é daqui que resulta a tremenda e realmente "insustentável" desigualdade que o mundo aprofunda e aumenta a cada dia que passa. Total hipocrisia. Para eles isso está tudo bem. É, portanto, sustentável.
O que não é, é a segurança social (de que eles não precisam) e todas as coisas do mesmo tipo, as antigas funções do estado regulador. Por isso vivemos numa sociedade cada vez mais classista. De cada vez que ouvimos essa palavra - e por isso ficamos a um pequeno passo de nós próprios passarmos a usá-la - estamos a ouvir um conceito que traduz um visão política classista, injusta, opressiva, desigual, falsa, porque oculta todas as zonas onde os políticos neoliberais não querem mexer: os seus rendimentos e os rendimentos dos seus amigos, financiadores e apoiantes lucrativos.
O uso cada vez maior da palavra, que começou por ser usada apenas por economistas neoliberais, passou para comentadores neoliberais ou socialistas seduzidos por essa visão do mundo e os proventos futuros que lhe estão associados, passou para o discurso das próprias perguntas dos jornalistas, para os artigos dos jornais, até invadir todas as esferas da vida. Estar vivo será sustentável? Ou é um incómodo para a economia que é necessário resolver com a máxima rapidez: velhos a mais, doentes a mais, deficientes a mais, artistas inúteis a mais, em suma, gente a mais.
Peço a maior atenção para as novas palavras que se espalham como doenças virais. Trazem consigo tudo, menos inocência. No mundo de hoje não há nada que seja inocente. Já agora que se leve até ao fim este oculto (de resto já muito ligeiro).
* Professor, compositor
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