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21/10/12

um adeus .. até sempre


.. numa carta muito bonita, como só um amigo ..


Público de 21.10.12

Obrigado, Pina, por tudo e... por nada

Por José Alberto Lemos ________________________________________

Foi numa daquelas curvas em que o PREC acelerou que começámos a andar juntos. Sim, a andar juntos, não brinco com as palavras. Como ousaria fazê-lo num texto para ti, que brincavas com as palavras como ninguém? Numa daquelas curvas em que víamos sempre um "salto qualitativo" na "revolução". Após essa curva passámos a partilhar todos os entusiasmos e loucuras do PREC. Desde a pícara defesa da sede da pequena "confraria" a que pertencíamos, até ao olhar sarcástico sobre alguns personagens. Até que o PREC um dia acelerou tanto que se esborrachou contra a parede. Gostavas sempre de citar o Chico Cordeiro que, no dia seguinte ao "final da Taça MFA", como alguém classificou o PREC, consolou a malta que se lamuriava no Piolho. "Deixem lá, camaradas, anito e meio de anarquia já ninguém nos tira". 

Foi melhor assim, claro, todos sabemos, excepto no que toca à matéria incandescente que aquele anito e meio forneceu à tua imaginação. Sim, porque no fundo tu olhavas para aquilo tudo como um romance ao vivo, a desenrolar-se perante os nossos olhos. Com juras de fidelidade, amores traídos, heróis de vão de escada, idiotas úteis e cínicos ansiosos por desembainhar as facas. Um manancial para o teu sentido de humor. 

No fundo aquilo era uma saga por que te tinhas apaixonado, como anos mais tarde te apaixonaste pelas sagas islandesas. "Que pedrada, pá!". Nada como um grande livro para produzir uma verdadeira pedrada. A única coisa que se lhe comparava era o Avamigran quando as enxaquecas atacavam. Aquilo sim, aquilo era o teu mundo, o mundo das palavras, daquelas palavras de que, por vezes, andavas à procura semanas, meses, para um poema. "Esta noite encontrei a palavra que procurava", dizias, com um brilhozinho nos olhos. "As palavras criam mundos". 

Desse anito e meio de anarquia sobrou um pouco de nostalgia, sobretudo pelo lado da subversão que tanto te atraía. Um entusiasmo pontual pela candidatura do Otelo e uma persistência militante pela Gazeta da Semana, o sonho de um "Libé" à nossa moda e escala. "Não emprestes a Gazeta a ninguém. Quem quiser ler que a compre". 

A subversão, sim. O país das pessoas de pernas para o ar estava-te no sangue. E na escrita, claro. Mas da escrita outros falarão melhor do que eu. Eu quero falar do entusiasmo com que víamos o Truffaut, o Hitchcock, o Minnelli, o Ford, o Hawks, o Mankiewicz ("os grandes argumentos do Mankiewicz"), o Capra, os grandes melodramas - do Mildred Pierce ao Some Came Running da deslumbrante Shirley Maclaine e do chapéu do Dean Martin, as grandes comédias, o Billy Wilder e o cínico Walter Matthau, o Groucho, o Fuller e, claro, A Sombra do Caçador, o teu preferido. Sem esquecer Os Contos da Lua Vaga, do Mizoguchi. Alguns vimo-los em salas quase vazias e geladas. Preferíamos, aliás, as salas vazias, mesmo antes de haver pipocas. Depois havia as estreias do Woody Allen ou do Scorsese ou do Coppola à sexta-feira, quando acelerávamos o fecho do jornal para ir à sessão da meia-noite. E havia ainda, claro, aqueles filmes que nunca verias e que despachavas com o célebre "não vi e não gostei". Foi contigo que aprendi a amar verdadeiramente o cinema. 

Sim, porque o cinema era uma verdadeira paixão, tal como a literatura. As outras coisas eram entusiasmos fortes, mas efémeros. Como o entusiasmo com que acolhemos o primeiro número do JL, onde tinhas uma grande entrevista com o Siza. Ou o entusiasmo com que me telefonaste para Londres, a pedir para trazer "todos os discos da Laurie Anderson". Ou o entusiasmo com que frequentaste o karaté, onde o mestre do vietvodao te ensinou uns magueris. Outros eram talvez mais duradouros, como a pintura da Vieira da Silva ou da Graça Morais. 

Sempre gostámos da noite. Deambulávamos pela cidade no Dyane, a conversar, a contar estórias, a brincar com as palavras, conduzidos pela tua imaginação, à espera que a noite nos surpreendesse. E, por vezes, acontecia. Como naquela madrugada em que num nó da auto-estrada vimos um carro capotar à nossa frente. Coisa sem consequências, mas a nossa moral kantiana obrigou-nos a dar boleia a uma jovem que fazia "strip-tease no Il Mondo" e que, apesar de fanhosa, se fartou de contar estórias pouco abonatórias dos companheiros de infortúnio. Foi o neo-realismo a entrar-nos pela noite. Já passava das quatro da manhã, mas disseste logo que irias acordar a Fátima para lhe contar a ocorrência. Foi quase um atropelamento e fuga. 

Detestavas viajar, mas por vezes lá ias em serviço do jornal e ficávamos à espera daquelas crónicas mordazes. Na Coreia, arrasaste um idiota que passou pelos Negócios Estrangeiros e nos Açores já nem me lembro de quem foi a vítima, mas lembro-me que nunca mais se recompôs. Na política, claro. 

Detestavas viajar, mas por vezes lá tínhamos que ir a Lisboa como conselheiros de redacção. Aproveitávamos para almoçar com a malta de O Jornal e rir com o Assis Pacheco. Tu e ele juntos eram uma torrente de estórias e de humor que chegava a perturbar a digestão. 

Detestavas viajar, mas uma vez quiseste ir a Lisboa ver o Chick Corea. E lá fomos na carrinha nova, confortável, um carro a sério. Íamos ficar todos a dormir em casa de um amigo, mas quiseste regressar ao Porto. Que aguentavas a viagem, que não estavas cansado, que nós podíamos dormir pelo caminho. Numa estrada ainda sem auto-estrada e onde o perigo sempre espreitava (desculpa, esta frase parece aqueles poemas que jovens atrevidos te traziam para avaliares e onde água rimava sempre com mágoa e amor com fulgor) quando acordei, o dia já tinha nascido e estávamos parados frente ao Cine Messias da Mealhada. Chegámos ao Porto às nove da manhã. 

Detestavas também que publicassem a tua fotografia no jornal sempre que saía um livro. Uma vez saiu uma "chapola" maior que o texto sobre o livro. Mas o incidente teve uma virtude. A sogra do Esteves tresleu o texto e, ao olhar para aquela foto, desabafou: "Coitado, era bom rapaz. Era amigo do meu genro". Foi o argumento de que precisavas para convencer os chefes de redacção a não publicar mais fotos tuas. Hoje, ontem, os jornais estão cheios de fotos tuas. 

Hoje, desgraçadamente, o desabafo da sogra do Esteves teria sentido. Hoje as fotos são grandes, mas os textos são ainda maiores e, por maiores que sejam, nunca caberias neles. Porque a simplicidade com que viveste, a modéstia genuína que te caracterizava, contrastavam em absoluto com a grandeza do teu talento e a nobreza do teu carácter. 

É a esse talento e a esse carácter que tenho que agradecer. Que temos todos que agradecer. Sobretudo aquela geração de jovens que entrou para o Jornal de Notícias em 1980 e que tanto aprendeu contigo. Para quem já era teu amigo, como eu, passar a trabalhar ao teu lado foi um privilégio ainda maior. Não tenho procuração de ninguém, mas sei que marcaste profundamente todos aqueles com quem trabalhaste naquela redacção. Mais novos e mais velhos, todos olhávamos para ti como alguém cujo talento nunca atingiríamos por muito competentes jornalistas que nos tornássemos, mas também com o orgulho de ter ao nosso lado alguém como tu. Os jornais de hoje podem acabar a embrulhar peixe, como recorrentemente lembravas num exercício pedagógico para refrear alguns egos, mas tu ficarás para sempre connosco. Tu és nosso património, do jornalismo, da cidade, do país e da literatura. 

A esse talento e a esse carácter devo muito daquilo que sei, muito daquilo que sou. Até na forma obsessiva como falavas das "miúdas" comecei a aprender o que seria ser pai. 

Por isso, Pina, se hoje as nossas lágrimas estavam a precisar de uma grande razão, tu acabaste de no-la dar. Uma razão do tamanho do mundo e uma dor que não cabe nele. 

Como escreveste no Waste Land, do Eliot, que ofereceste à Luísa antes de uma partida para Londres: obrigado, por tudo e... por nada.


Recordar o poeta e jornalista Manuel António Pina - vídeo RTP-notícias :

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