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07/10/15

Um copo meio cheio

no Expresso,
7/10/2015

por Alexandre Abreu

Os resultados das eleições do passado domingo são, como sempre acontece, passíveis de leituras muito diversas. Do meu ponto de vista, foram um copo meio cheio. Se, por motivos a que me referirei mais abaixo, não criaram desde já o espaço político necessário a que se possa começar a reconstruir um país mais viável e decente, é também certo que foram dados passos importantes nesse sentido: a perda da maioria absoluta por parte do governo, a rejeição da governação da direita por uma vasta maioria e a gradual emergência de uma nova alternativa à esquerda. 

O princípio do fim do pesadelo 

No artigo que escrevi nesta mesma coluna há uma semana atrás, referi-me ao velho sonho da direita, concretizado em 2011 – um governo, uma maioria, um presidente – como tendo significado um pesadelo de empobrecimento, desigualdade, privatização e desagregação social para os portugueses.

No domingo passado, este pesadelo começou a ser desmantelado, para já com a remoção de uma dessas componentes: a maioria parlamentar. Isso significa não só que o governo e a coligação deixam de ter as mãos livres para implementar a sua agenda, como também que não serão capazes de inviabilizar as iniciativas legislativas relativamente às quais haja entendimentos do PS para a esquerda. Isso permitirá não só impedir muito coisa, como realizar muita coisa.

Por outro lado, a porta fica entreaberta para a demissão do governo e a realização de eleições antecipadas dentro de relativamente pouco tempo – na verdade, logo que o PS considere vantajoso provocá-las. Estou certo de ser este o único cenário em que tal sucederá já que não me parece concebível que a direita venha a estar em posição de optar ela própria por fazê-lo – tendo em conta que a tendência de erosão eleitoral da coligação não deixará de continuar a fazer-se sentir em virtude dos ventos económicos desfavoráveis que o país tem pela frente. Estas eleições tiveram lugar numa conjuntura de curto prazo singularmente favorável para o governo PSD-CDS (cotação do euro, preço do petróleo, juros internacionais), a qual, a par da suspensão eleitoralista da austeridade, permitiu fazer passar com relativo sucesso uma falsa narrativa de retoma, como se o pior já tivesse passado. Mas é claro que o pior não passou, como se vê pelos níveis recorde de dívida pública e dívida externa que pesam cada vez mais sobre a economia portuguesa, e a ilusão da retoma será rapidamente desfeita. É aliás com isso mesmo que o PS está a contar.

A derrota da direita 

Se é certo que a coligação PSD-CDS venceu as eleições, no sentido em que teve mais votos que o PS, é também certo que a direita foi pesadamente derrotada, no sentido em que a sua governação e as suas propostas políticas foram expressamente rejeitadas por mais de três quintos dos eleitores. A coligação governamental não só perdeu um quarto do seu apoio eleitoral face a 2011 (12% em 50%) como irá tomar posse contra a vontade expressa da maioria dos portuguesas. Aliás, só o fará porque o PS, por dar prioridade ao tacticismo face à emergência de recuperar o país, prefere, na acertada expressão de Alberto João Jardim, deixar o governo a fritar em lume brando.

Para ter noção da dimensão da derrota da direita, basta aliás atentar no seguinte aspecto ao qual não me parece ter sido dada ainda suficiente atenção: caso o PSD e o CDS não tivessem decidido em Abril passado avançar para estas eleições em coligação pré-eleitoral - e assumindo que o CDS ainda valerá sozinho mais de 6% -, os dois partidos do governo teriam sido o segundo e quinto mais votados, respectivamente. O PSD teria tido ainda menos votos do que este fraquíssimo resultado do PS, o CDS teria sido a quinta força parlamentar e teria sido o PS a ser convidado a formar governo. Para “vitória histórica da direita”, convenhamos que é bastante pífio.

O extremo-centro 

Outro aspecto incontornável destas eleições foi a fortíssima penalização do Partido Socialista. O resultado do PS foi baixo face ao que se esperava até há pouco tempo, baixo face aos seus resultados históricos, baixo face ao que teve a direita e baixo face ao que seria de esperar que o maior partido da oposição tivesse dado o estado do país.

Na minha opinião, foram vários os motivos para que tal sucedesse. Um deles, mais superficial, foram os erros e a incompetência comunicacional da campanha do PS, sobretudo face à notável eficácia da direita a desviar as atenções do que tem feito, do real estado do país e do que pretende fazer no futuro. Adicionalmente, o PS teve também contra si a hegemonia da direita na comunicação social, o timing do caso Sócrates e as suas próprias divisões internas.

Mas a um nível mais fundamental, o PS foi penalizado pelo mesmo motivo porque os partidos da social-democracia europeia têm vindo a ser penalizados sem apelo nem agravo nos últimos anos: devido ao facto de propor um conjunto de propostas políticas intrinsecamente inconsistentes e inconsequentes. O PS prometeu defender o emprego e, ao mesmo tempo, prosseguir a reforma neoliberal do mercado de trabalho. Prometeu retomar o crescimento através do estímulo à procura e, simultaneamente, não pôr em causa nenhum dos espartilhos europeus que deprimem essa mesma procura. Afirmou querer salvaguardar a segurança social e, ao memso tempo, anunciou um corte real das pensões através do seu congelamento e uma redução da TSU semelhante à que os portugueses repudiaram em massa em 2012.

São exemplos especialmente flagrantes, mas limitam-se a ilustrar uma inconsistência mais profunda entre o plano aspiracional, no qual o PS – e a social-democracia europeia – falam de crescimento e de justiça social, e o plano das propostas políticas concretas, no qual são incapazes de confrontar os obstáculos fundamentais a esses mesmos crescimento e justiça social. Em Portugal como no resto da Europa, esta inconsistência da social-democracia tem vindo a ser detectada, e impiedosamente punida, pelo eleitorado.

O próprio comportamento pós-eleitoral do PS revela a natureza da encruzilhada em que se encontra. A coligação irá formar governo contra a vontade expressa da maioria do eleitorado – e irá com certeza formar governo contra a vontade da vastíssima maioria dos eleitores que votaram no PS, incluindo muitos que votaram “útil” para mudar de governo. Ao rejeitar compromissos à esquerda, revelando a sua preferência por viabilizar o governo da direita por tempo indeterminado, o PS está a fazer uma escolha pela qual não deixará de pagar um preço. Ao dar prioridade ao tacticismo face à emergência de recuperar o país, o PS mostra que os votos que recebeu não tiveram nada de útil e revela a sua incapacidade para resistir à “pasokização” que tem vindo a afectar a generalidade dos seus congéneres europeus.

A emergência de uma nova alternativa 

Este declínio da social-democracia é o reverso da medalha da gradual emergência da esquerda como um terceiro campo político central nos sistemas políticos europeus. Em Portugal como em muitos outros países europeus, temos vindo a assistir à gradual transição de um sistema essencialmente bimodal, assente na alternância entre a social-democracia e o campo conservador, para um sistema com três pólos políticos principais. Não foi apenas o BE que teve um resultado histórico: o Bloco e a CDU, em conjunto, tiveram o resultado eleitoral mais expressivo de sempre e representam já cerca de um quinto do eleitorado. Estes resultados recompensam o trabalho realizado na defesa das pessoas ao longo da última legislatura bem como a consistência entre os valores defendidos, o diagnóstico efectuado e as medidas propostas. Mas na medida em que acompanham uma tendência que é europeia e não meramente nacional, são também o resultado de dinâmicas estruturais mais profundas.

Essas dinâmicas continuarão a manifestar-se. Para lá do ciclo político de curto prazo, se há algo que podemos afirmar com elevada certeza é que os bloqueios que a economia portuguesa tem vindo a acumular nas últimas duas décadas – os constrangimentos do Euro, as dívidas pública e externa acumuladas, o declínio da capacidade produtiva – estão hoje mais presentes do que nunca e prometem obrigar a desenlaces mais decisivos num horizonte de poucos anos. Serão então recompensados aqueles que, rejeitando os tacticismos e sectarismos, tiverem demonstrado consistência na defesa das pessoas. Esse caminho faz-se caminhando.
fonte

* Licenciado em economia pelo ISEG e doutor em economia pela Universidade de Londres. Interessa-se sobretudo pelas questões da economia política e do desenvolvimento. É também co-autor do blogue Ladrões de Bicicletas e do livro “A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes”, publicado pela Tinta da China em 2013. 

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