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18/12/13

Crato e o ranço a fascismo


de Teresa Dias Coelho, Pain 06
Era o meu primeiro ano em Lisboa, tinha chegado há seis meses. Contrariamente à tradição, em 1972-73 eram as Faculdades de Letras (que eu frequentava) e a de Direito as de maior contestação académica, aquelas onde mais empenhadamente se protestava contra as políticas do regime fascista. 

Em Direito (onde no ano seguinte a minha irmã viria a ser colega do então revolucionário (!) Durão Barroso), o governo de Marcelo Caetano já tinha cortado os protestos, as veleidades transformadoras, pela raiz: colocara na faculdade um corpo de antigos comandos incumbidos de zelarem pela "ordem". Todos abrutalhados de corpo e de espírito, todos uns cães ferozes sedentos do sangue dos estudantes, todos imbuídos desse poderzinho de Pirro tão caro aos ditadores. O nome que lhes foi dado, "gorilas", correspondia ao fabulário da altura.

Logo em frente, em Letras, folgavam-nos as costas, fazíamos ainda reuniões clandestinas, distribuíamos panfletos.
Lembro-me bem daquela manhã, de como, consciente do perigo e da ousadia, levara pimenta de casa, na eventualidade de um ataque dos cães-polícia, de como obriguei a minha amiga Judite a estar presente, nervosíssima. Realizava-se mais uma reunião clandestina, os professores que sabiam e não denunciavam, os professores amigos, os professores cúmplices, o Lindley Cintra, o David Mourão-Ferreia, citando só os mais activos. Éramos ... os estudantes quase todos. Dávamos voz à revolta, à urgência de uma mudança, nomeadamente a nível da qualidade do ensino superior. Havia nesse ano, nessa época, gente muito bem falante na Faculdade de Letras, gente muito informada, que anos depois haveria de tornar-se conhecida, integrar governos, partidos, instituições. Eu ouvia e aprendia só, os meus 18 anos viseenses desconhecedores de quase tudo. Em cada janela da sala estavam plantados estudantes de vigília, em cada porta. 

Foi então que percebemos que qualquer coisa se passava em Direito. Gente cá fora, corridas, gritos, uma enorme confusão. Viríamos a saber, depois (não esquecer que não havia telemóveis!!) da rebelião apesar dos "gorilas", o carro do professor-fascista Martinez virado na rua.
Logo a seguir, o alarme dado por quem vigiava a alameda, do lado de dentro das janelas: "Chegou a polícia de choque! Trazem cães!» O nervosismo, o pavor. Sossegavam-nos os mais experientes, que garantiam que a polícia não ousava entrar na universidade, a opinião pública que não se queria afrontar demasiado. Muitos não aguentaram ficar, fugiram da sala, saíram da faculdade. Cá fora a polícia de choque e os cães, os alunos, os professores presos, o gás lacrimogéneo. A minha amiga Judite que levou com ele..

Presos uns quantos "agitadores", as coisas aquietaram-se, a polícia debandou. Respirava-se excitação, todos a querermos saber do que se passara lá fora, os de Direito, que lhes tinha acontecido...?
Aos poucos, foram-se-nos juntando estudantes de outras faculdades (a única universidade que então existia era a clássica), a de economia, o técnico, amigos que não víamos há muito e chegavam ávidos de notícias e de aventura, todos excitadíssimos, todos meio deslumbrados pela coragem dos de Letras, "que é que lhes deu para assim liderarem o movimento estudantil, pacatas meninas de outrora"...?! Acabámos todos a confraternizar, a trocar informações na Cantina Velha (a única à altura, também), os ânimos exaltadíssimos, efervescente, em todos, visível, o entusiasmo pela ousadia, a própria e a alheia..

Ficou-me gravado na memória como um selo de fogo: contrariamente ao que sempre fazíamos, sugeri que, nesse dia, fôssemos para a fila dos bitoques, no primeiro andar. Não sei se a opção me valeu a vida. Poucos minutos (teriam sido segundos?) depois de termos subido, dei por mim a atirar-me para o chão, reflexo instintivo, inconsciente. Todos, à minha volta, caídos, protegendo-se. No rés-do-chão do "prato-do-dia", as balas («de borracha e disparadas para o ar», viriam eles a alegar, como de costume..), estilhaçavam as paredes de vidro da cantina, acertavam em estudantes atordoados de incredulidade, o pânico-mola que os fazia correr, imponderados. Um deles (e envergonho-me de não lhe lembrar o nome ..) viria a ser assistido no Hospital de Santa Maria, para onde tinha tentado fugir, atingido pelas costas, vinte e tal perfurações no intestino. A sua história, o evoluir do seu estado de saúde, haveria de manter o país suspenso, nos dias que se seguiram. Sobreviveu. As carrinhas que tinham chegado do nada, imprevistas e multiplicadas, os polícias como cães raivosos, couraçados, armados de G3. Dispararam como loucos, sem pré-aviso, sem nada. Almoçávamos. Éramos jovens. Queríamos, apenas, consertar o mundo. Éramos tão jovens! Almoçávamos. (*)

Depois dos incidentes desse dia, passou a haver "gorilas" também em Letras. Intimidavam-nos. Proibiam-nos de andar em grupos (3 já era uma conspiração!), obrigavam-nos a "circular". Qualquer conversa, qualquer "estar-se", uma ameaça. Éramos tratados como se fôssemos terroristas.

Tão tenebrosos, então, como os que hoje, professores, ousaram lutar pela sua dignidade, contra a realização de uma prova iníqua, disparatada, vexatória.

Os "gorilas" viriam a sair de Letras, de Direito, penso que apenas depois do 25 de Abril, apenas depois dessa revolução sonhada, então em processo de gestação nas universidades e nas fábricas da margem sul, nas reuniões clandestinas e nas tipografias, nas ruas e nas casas insonhadas. (**)
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Século XXI, ano 13. A polícia chegou, de novo, às portas das escolas. Ditadores que se enfeitam de alheados mantos, a democracia o mais periclitante, o governo PSD-CDS, o ministro da Educação, todos mestres na "manhosice" instituída. Directores de escola que são tão "gorilas" como esses que se instalaram em Letras e em Direito na década de 70 do século passado, servis lacaios e vingativos, sequiosos do sangue, da alma dos que resistem. Um cheiro fétido de fascismo nas bocas e nos gestos, um odor nauseabundo. E os cúmplices. Cúmplices sem perdão, os professores que pactuaram, que se prestaram a validar a indignidade, vigiando a Prova ACC. Que viram o fascismo de frente, de novo, e não gritaram.
Hoje. Foto retirada daqui
legenda da fotografia:

A polícia de choque está hoje de manhã nas instalações da escola Emídio Navarro, em Almada, na sequência de uma tentativa de invasão do estabelecimento e em dia de prova de avaliação de professores-- fonte
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notícias de 1973:
(*) daqui:
No dia 3 de Maio de 1973, os incidentes ocorridos em Lisboa na Faculdade de Letras e na cantina da Universidade constituíram uma nova expressão dessa violência: cargas de polícias armados sobre estudantes, utilização de granadas de gás lacrimogéneo, cerco da cantina à hora da refeição e intenso tiroteio. Pelo menos 5 estudantes foram atingidos pelos tiros, um dos quais gravemente — o aluno de Medicina Luís Filipe da Silva Simões.

(**) daqui:
Segunda-feira, 14 de Maio de 1973
A polícia de choque, comandada pelo capitão Maltês, reprime uma concentração de estudantes contra a presença de "gorilas" na Universidade A Faculdade de Letras de Lisboa é encerrada por tempo indeterminado. Uma concentração de estudantes com o objectivo de expulsar os «gorilas» será reprimida pela polícia de choque sob o comando do capitão Maltês.

ler também, daqui:  
Radicalismo político e ativismo estudantil nos últimos anos do fascismo (1969-1974)

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