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13/01/13

de Eugénio Lisboa a um PM surdo

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Duas cartas de Eugénio Lisboa ao PM:
--- recebida via e-mail, a primeira, encontrada (aqui) por acaso, a segunda ..

“Eu amei a justiça e odiei a iniquidade: por isso, morro no exílio.” 

1ª carta que Eugénio Lisboa escreveu a Passos Coelho (em Setembro de 2012). O signatário tem hoje 82 anos e, para além de todas as funções que desempenhou e enuncia no final, foi um ensaísta e crítico literário notável. Peço a vossa atenção, porque fala em nome de todos nós. Trata-se de uma reflexão sobre a saúde da nossa pátria e penso que ninguém, de nenhum quadrante, poderá ficar-lhe indiferente. 

CARTA AO PRIMEIRO-MINISTRO DE PORTUGAL 

Exmo. Senhor Primeiro Ministro 

Hesitei muito em dirigir-lhe estas palavras, que mais não dão do que uma pálida ideia da onda de indignação que varre o país, de norte a sul, e de leste a oeste. Além do mais, não é meu costume nem vocação escrever coisas de cariz político, mais me inclinando para o pelouro cultural. Mas há momentos em que, mesmo que não vamos nós ao encontro da política, vem ela, irresistivelmente, ao nosso encontro. E, então, não há que fugir-lhe. 

Para ser inteiramente franco, escrevo-lhe, não tanto por acreditar que vá ter em V. Exa. qualquer efeito – todo o vosso comportamento, neste primeiro ano de governo, traindo, inescrupulosamente, todas as promessas feitas em campanha eleitoral, não convida à esperança numa reviravolta! – mas, antes, para ficar de bem com a minha consciência. Tenho 82 anos e pouco me restará de vida, o que significa que, a mim, já pouco mal poderá infligir V. Exa. e o algum que me inflija será sempre de curta duração. É aquilo a que costumo chamar “as vantagens do túmulo” ou, se preferir, a coragem que dá a proximidade do túmulo. Tanto o que me dê como o que me tire será sempre de curta duração. Não será, pois, de mim que falo, mesmo quando use, na frase, o “odioso eu”, a que aludia Pascal.  
Mas tenho, como disse, 82 anos, e, portanto, uma alongada e bem vivida experiência da velhice – da minha e da dos meus amigos e familiares. A velhice é um pouco – ou é muito – a experiência de uma contínua e ininterrupta perda de poderes. “Desistir é a derradeira tragédia”, disse um escritor pouco conhecido. Desistir é aquilo que vão fazendo, sem cessar, os que envelhecem. Desistir, palavra horrível. Estamos no verão, no momento em que escrevo isto, e acorrem-me as palavras tremendas de um grande poeta inglês do século XX (Eliot): “Um velho, num mês de secura”... A velhice, encarquilhando-se, no meio da desolação e da secura. É para isto que servem os poetas: para encontrarem, em poucas palavras, a medalha eficaz e definitiva para uma situação, uma visão, uma emoção ou uma ideia. 

A velhice, Senhor Primeiro Ministro, é, com as dores que arrasta – as físicas, as emotivas e as morais – um período bem difícil de atravessar. Já alguém a definiu como o departamento dos doentes externos do Purgatório. E uma grande contista da Nova Zelândia, que dava pelo nome de Katherine Mansfield, com a afinada sensibilidade e sabedoria da vida, de que V. Exa. e o seu governo parecem ter défice, observou, num dos contos singulares do seu belíssimo livro intitulado The Garden Party: “O velho Sr. Neave achava-se demasiado velho para a primavera.” Ser velho é também isto: acharmos que a primavera já não é para nós, que não temos direito a ela, que estamos a mais, dentro dela... Já foi nossa, já, de certo modo, nos definiu. Hoje, não. Hoje, sentimos que já não interessamos, que, até, incomodamos. 

Todo o discurso político de V. Exas., os do governo, todas as vossas decisões apontam na mesma direcção: mandar-nos para o cimo da montanha, embrulhados em metade de uma velha manta, à espera de que o urso lendário (ou o frio) venha tomar conta de nós. Cortam-nos tudo, o conforto, o direito de nos sentirmos, não digo amados (seria muito), mas, de algum modo, utilizáveis: sempre temos umas pitadas de sabedoria caseira a propiciar aos mais estouvados e impulsivos da nova casta que nos assola. Mas não. Pessoas, como eu, estiveram, até depois dos 65 anos, sem gastar um tostão ao Estado, com a sua saúde ou com a falta dela. Sempre, no entanto, descontando uma fatia pesada do seu salário, para uma ADSE, que talvez nos fosse útil, num período de necessidade, que se foi desejando longínquo. Chegado, já sobre o tarde, o momento de alguma necessidade, tudo nos é retirado, sem uma atenção, pequena que fosse, ao contrato anteriormente firmado. É quando mais necessitamos, para lutar contra a doença, contra a dor e contra o isolamento gradativamente crescente, que nos constituímos em alvo favorito do tiroteio fiscal: subsídios (que não passavam de uma forma de disfarçar a incompetência salarial), comparticipações nos custos da saúde, actualizações salariais – tudo pela borda fora. Incluindo, também, esse papel embaraçoso que é a Constituição, particularmente odiada por estes novos fundibulários. O que é preciso é salvar os ricos, os bancos, que andaram a brincar à Dona Branca com o nosso dinheiro e as empresas de tubarões, que enriquecem sem arriscar um cabelo, em simbiose sinistra com um Estado que dá o que não é dele e paga o que diz não ter, para que eles enriqueçam mais, passando a fruir o que também não é deles, porque até é nosso. 

Já alguém, aludindo à mesma falta de sensibilidade de que V. Exa. dá provas, em relação à velhice e aos seus poderes decrescentes e mal apoiados, sugeriu, com humor ferino, que se atirassem os velhos e os reformados para asilos desguarnecidos , situados, de preferência, em andares altos de prédios muito altos: de um 14º andar, explicava, a desolação que se comtempla até passa por paisagem. V. Exa. e os do seu governo exibem uma sensibilidade muito, mas mesmo muito, neste gosto. V. Exas. transformam a velhice num crime punível pela medida grande. As políticas radicais de V. Exa, e do seu robôtico Ministro das Finanças - sim, porque a Troika informou que as políticas são vossas e não deles... – têm levado a isto: a uma total anestesia das antenas sociais ou simplesmente humanas, que caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas que a História não confina a míseras notas de pé de página. 

Falei da velhice porque é o pelouro que, de momento, tenho mais à mão. Mas o sofrimento devastador, que o fundamentalismo ideológico de V. Exa. está desencadear pelo país fora, afecta muito mais do que a fatia dos velhos e reformados. Jovens sem emprego e sem futuro à vista, homens e mulheres de todas as idades e de todos os caminhos da vida – tudo é queimado no altar ideológico onde arde a chama de um dogma cego à fria realidade dos factos e dos resultados. Dizia Joan Ruddock não acreditar que radicalismo e bom senso fossem incompatíveis. V. Exa. e o seu governo provam que o são: não há forma de conviverem pacificamente. Nisto, estou muito de acordo com a sensatez do antigo ministro conservador inglês, Francis Pym, que teve a ousadia de avisar a Primeira Ministra Margaret Thatcher (uma expoente do extremismo neoliberal), nestes termos: “Extremismo e conservantismo são termos contraditórios”. Pym pagou, é claro, a factura: se a memória me não engana, foi o primeiro membro do primeiro governo de Thatcher a ser despedido, sem apelo nem agravo. A “conservadora” Margaret Thatcher – como o “conservador” Passos Coelho – quis misturar água com azeite, isto é, conservantismo e extremismo. Claro que não dá. 

Alguém observava que os americanos ficavam muito admirados quando se sabiam odiados. É possível que, no governo e no partido a que V. Exa. preside, a maior parte dos seus constituintes não se aperceba bem (ou, apercebendo-se, não compreenda), de que lavra, no país, um grande incêndio de ressentimento e ódio. Darei a V. Exa. – e com isto termino – uma pista para um bom entendimento do que se está a passar. Atribuíram-se ao Papa Gregório VII estas palavras: ”Eu amei a justiça e odiei a iniquidade: por isso, morro no exílio.” Uma grande parte da população portuguesa, hoje, sente-se exilada no seu próprio país, pelo delito de pedir mais justiça e mais equidade. Tanto uma como outra se fazem, cada dia, mais invisíveis. Há nisto, é claro, um perigo. 

De V. Exa., atentamente, 
Eugénio Lisboa 

Ex-Director da Total, em Moçambique 
Ex-Director da SONAP MOC 
Ex-Administrador da SONAPMOC e da SONAREP 
Ex-Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal em Londres 
Prof. Catedrático Especial de Estudos Portugueses (Univ. Nottingham) 
Ex-Presidente da Comissão Nacional da UNESCO 
Prof. Catedrático Visitante da Univ. de Aveiro 
Doutor Honoris Causa pela Univ. de Nottingham 
Doutor Honoris Causa pela Universidade de Aveiro 
Medalha de Mérito Cultural (Câmara de Cascais)
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Outubro de 2012

SEGUNDA CARTA AO PRIMEIRO MINISTRO DE PORTUGAL


Senhor Primeiro Ministro 

Não há muitos dias, dirigi a V. Exa. uma carta que, como cidadão, entendi dever enviar-lhe. Era uma carta séria - e para ser levada a sério - , profundamente meditada e que visava dar a V. Exa. uma ideia do sofrimento que grassa no nosso país, motivado por uma política financeira fundamentalista e insensata, que tem promovido um sofrimento estéril e, portanto, beirando o criminoso. 

O problema, com este governo a que V. Exa. preside, é ser constituído por políticos amadores e vastamente incultos: faltando-lhes cultura (histórica e não só), tendem a não ter perspectivas e a não mergulhar nas experiências milenares que a História regista para com ela aprendermos. 

O Sr. Ministro das Finanças, por exemplo, invoca, com ar professoral e quase menosprezante, modelos “científicos” que, de “científico, nada têm. Um dos ingredientes fundamentais do universo científico é o princípio da verificabilidade: quando uma hipótese de trabalho não é verificada pelos arreliadores factos, deve ser abandonada, procurando-se outra melhor. É aquilo a que Popper chama a “falsificação” da hipótese que já não serve, para maior proveito da que vem a seguir... O Sr. Ministro das Finanças tem visto todas as suas hipóteses - que, aliás se resumem a uma: cortar nos rendimentos dos pobres e da classe dita média – desbaratadas pelos resultados da aplicação delas. Mas, essas hipóteses, a que chama “modelos”, persiste em aplicá-las em doses reforçadas. Fazendo este curioso raciocínio: aquilo que é calamitoso, em doses modestas, é virtuoso, em doses reforçadas. A ciência, é claro, tem horror a estes comportamentos. A economia já é uma ciência relativa (“comportamental”, lembra, e muito bem, o sensato e competente Dr. Bagão Félix), mas, nas mãos dogmáticas do Sr. Ministro das Finanças, ela não passa de um dogma religioso, com pés de barro e consequências sinistras. 

Falei nos ensinamentos da História. Se V. Exa., em vez de confiar nas crenças religiosas do Sr. Ministro das Finanças, se desse ao trabalho de ir ler a intervenção do deputado Victor Hugo, em 10 de Novembro de 1848, veria que, já nesse tempo remoto, falando de cortes selvagens que se propunham fazer para o orçamento do ano seguinte, o grande poeta e realista que era Victor Hugo dizia o seguinte, que traduzo, para benefício de V. Exa.: “Ninguém mais do que eu, caros senhores, está penetrado da necessidade urgente de aligeirar o orçamento; simplesmente, na minha opinião, o remédio para o embaraço das nossas finanças não reside em certas economias mesquinhas e detestáveis; o remédio estaria, quanto a mim, mais alto e algures; estaria numa política inteligente e tranquilizadora, que desse confiança à França, que fizesse renascer a ordem, o trabalho e o crédito, e que permitisse diminuir, suprimir mesmo as enormes despesas sociais que resultam dos embaraços da situação.” Repare, Sr. Primeiro Ministro: o remédio estaria “mais alto e algures” (para nós, naquilo – Parcerias Público-Privadas, especulações na Bolsa, transferências para fora e paraísos fiscais, empresas e institutos que alimentam clientelas, etc. etc. – em que V. Exa. se recusa a mexer, castigando, de preferência, a classe média, para proteger desavergonhadamente uma falsa elite de falsos empresários). E repare ainda: “uma política inteligente e tranquilizadora”. Porque se trata mesmo de tranquilizar um povo levado ao desespero e à beira dos mais indesejáveis desacatos. As revoluções surgem nestes momentos e sabe V. Exa. porquê? Leia o nosso Eça, tantas vezes de bom conselho. Diz ele: “As desgraças das revoluções são dolorosas fatalidades, as desgraças dos maus governos são dolorosas infâmias.” É quando as pessoas já não toleram a extensão das “dolorosas infâmias” que se não importam de experimentar o risco das “dolorosas fatalidades” das revoluções”. E não se apresse V. Exa. a sugerir que estou a ameaçá-lo (nem para isso tenho poder e, ainda menos jeito e desejo): estou só a preveni-lo. Não estique demasiado a corda. 

O Sr. Ministro das Finanças, para lhe ser franco, parece-me um ser astral e completamente alienado das realidades sociais do País. Será um técnico, embora se me afigure fraco em cálculo e previsão. Mas, a V. Exa., que não é técnico de coisa nenhuma, cumpre-lhe, ao menos, compensar um pouco, com alguma sensibilidade política e social (digamos, simplesmente: humana), a total e inquietante insensibilidade do chanceler das Finanças. Pode ser (quem sabe?) que ainda vá a tempo. 

Com os melhores cumprimentos,
Eugénio Lisboa

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