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28/02/12

dos desacordos tortográficos

Consoante muda
A voz das consoantes sem voz
Por Rui Tavares
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Salvé, Vasco Graça Moura, insigne auctor que desafiaste o dictame do Governo e reintroduziste a escripta antiga no teu Feudo Cultural de Belém! Povo português, imitai o exemplo deste Aristides Sousa Mendes das consoantes mudas, como lhe chamou o escriptor e traductor Jorge Palinhos. Salvai as sanctas letrinhas ameaçadas pela sanha accordatária.

Mas ficai alerta, portugueses! As consoantes mudas são muitas mais do que julgais! O "c" de actual e o "p" de óptimo são apenas os últimos sobreviventes de um extermínio secular que lhes moveram os medonhos modernizadores da escripta. Há que salvar agora estas pobres victimas, até à septima geração.

Acolhei-as pois a todas, portugueses, recolhei-as agora em vossos escriptos como a inocentes ameaçados por Herodes. Se há uma consoante muda a salvar em factura, há outra em sanctidade, e esta ainda mais sancta do que aquela. O Espírito Sancto tem uma. Maria Magdalena tem outra. E Jesus Cristo? Ora! O fructo do vosso ventre, Maria, já tinha consoante muda mesmo antes de nascer. Não sabíeis? Assim Ele se conformou, e nós nos inconformaremos.

Há quem diga que o accordo ortográfico é um tractado internacional que foi já transcripto para as nossas directivas internas. Dizem que o assumpto morreu.

Balelas! Nada nem ninguém nos obrigará a cumprir obrigações internacionais. Vasco Graça Moura mostra o caminho, e eu - peccador que fui - vejo agora a luz. Depois da summa missão de salvar as consoantes mudas que resistem, e ressusciptar as que foram suppliciadas no passado, há que supplementar este grande desígnio com outras acções.

O conductor da ambulância que leva doentes oncológicos a serem tractados, pode desobedecer ao corte de subsídios de transporte fazendo o serviço gratuitamente. O quê, a austeridade, a troika? Balelas! O memorando não passa de um simples accordo internacional que o Governo quer implementar. Se Graça Moura faz lei, de graça poderão também entrar os passageiros nos transportes públicos. E se o seu chefe for um republicano e patriota daqueles que não se contentam com andar com a bandeira num pinda lapela? Pois decrete que o fim dos feriados não vale lá na repartição. E o paginador do Diário da Repúblicapode rasurar as nomeações partidárias e alguns zeros dos salários de administrador, para dar espaço às consoantes mudas. O Governo entenderá.

Néscio António Mega Ferreira que, apesar da sua gestão impeccável, foi demitido. Nada lhe succederia se, em vez de padecer de "falta de sintonia política", tivesse antes violado um accordo internacional que o Governo decidira fazer entrar em vigor meras semanas antes.

Insensato Pedro Rosa Mendes, que foi censurado por contrariar o Governo de Angola. Se contrariasse a CPLP inteira, ainda tinha crónica, e applauso da imprensa!

Longe vai Diogo Infante, demitido por não ter dinheiro para fazer teatro no Teatro Nacional. Mas João Motta, que o substituiu, pode agora imitar a Nova Estrela de Belém. Mande as restricções às malvas, gaste o que tiver a gastar, desde que mande os actores pronunciar as consoantes que agora já não são mudas mas mártires, e que nunca mais se calarão, e que orgulhosamente transformaremos em oclusivas, fricativas ou até explosivas, se nos der na bolha, numa aKção aFFirmativa e peremPtória!

Está assim lançado um movimento que fará os gregos corar de vergonha e os alemães tremerem das pernas. Vamos dar voz às consoantes sem voz! E depois, quem sabe, aos portugueses sem voz, sem trabalho e sem futuro.

Historiador. Deputado independente ao Parlamento Europeu (http://twitter.com/ruitavares); a pedido do autor, este artigo respeita as normas do Acordo Ortográfico

Público de 6.2.12

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Consoantes mudas ou colunistas surdos?
Por Manuel Villaverde Cabral

Professor universitário
Debate Acordo Ortográfico
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O colunista Rui Tavares decidiu adoptar, na sua crónica de 6 de Fevereiro, um tom pretensamente jocoso para criticar a decisão do novo presidente do CCB, Vasco Graça Moura, de não aplicar o chamado "acordo ortográfico" imposto aos portugueses, apesar da forte mobilização que se registou no país contra ele e do facto de dois dos maiores países de língua oficial portuguesa, Angola e Moçambique, não terem ratificado o respectivo tratado. Fez mal. Quis ser engraçado, mas não teve piada.

O assunto é demasiado sério e não se resolve com ofensas avulsas contra uma pessoa que há mais de uma década se dedicou a rebater os escassos argumentos esgrimidos por alguns raros dicionaristas agindo por conta de interesses políticos mal compreendidos. Tavares apresenta-se como arauto do alinhamento da ortografia do Português europeu pela do Português do Brasil, mas não adianta um único argumento a favor do "acordo".

Mistura alhos com bugalhos e agita todos os episódios da crónica política recente para "gozar" com as justificadas dúvidas de Graça Moura e dezenas de milhares de outros portugueses (e alguns brasileiros) que conseguiram bloquear a primeira tentativa de nos impingir o dito "acordo". Porém, toda a sua jocosa pirotecnia não acrescenta um átomo às débeis falácias dos professores Houaiss e Casteleiro, quando entenderam "fazer política com a língua" em vez de "fazerem verdadeira política da língua", como acontece igualmente com Tavares.

Ora, o "acordo" não é mau para um país abstracto chamado Portugal e para os "conservadores" de quem o colunista se pretende rir. Nem sequer é apenas mau para a ortografia e a fonética do Português europeu; é mau sobretudo para a já de si deficiente aprendizagem do Português. Só para dar um exemplo, as "consoantes mudas" que Tavares pretendeu ridicularizar logo no título da crónica não são tiques de bota-de-elástico. Têm funções fonéticas e etimológicas relevantes que só o esquecimento, para não dizer outra coisa, faz desprezar. Foneticamente, abrem as vogais que se lhe seguem e permitem distinguir, por exemplo, "recessão" de "recepção", já que a tendência do Português europeu falado é, como se sabe, para o chamado "emudecimento" das próprias vogais não sinalizadas.

Além disso, etimologicamente as ditas consoantes "mudas" servem para identificar étimos comuns, não só dentro do próprio Português, como por exemplo em "Egipto" e "egípcio", sendo o "p" alegadamente mudo na primeira palavra e pronunciado na segunda; como também para identificar étimos comuns noutras línguas europeias: "acção" e "activo", por exemplo, pertencem a uma vasta família etimológica presente não só em línguas latinas como o Francês ("action", "actif") mas também no Inglês ("action", "active"). Por outras palavras, a etimologia e a sua representação gráfica ajudam-nos a saber de onde vimos, se é que a história conta alguma coisa para quem se assina como historiador.

A cedência à ortografia brasileira talvez faça vender alguns dicionários mas será altamente prejudicial para a aprendizagem da língua pelas futuras gerações de Portugueses da Europa, que já não precisam de ser desajudados. As profundas alterações introduzidas pelo presente "acordo" na ortografia portuguesa não são equivalentes à substituição do "ph" de "pharmácia" por "f", pois esta alteração não afectou a fonética da palavra, como a supressão do "c" mudo afectará a pronúncia dos compostos do étimo "afecto" se este "acordo" for por diante. Ignora Rui Tavares o que aconteceu ao fonema "güe" na palavra "bilingüe" quando o trema foi suprimido em Portugal (o Brasil não nos acompanhou e fez bem)?

O colunista devia saber que é muito feio tentar desvalorizar os argumentos alheios com piadas de mau gosto. Não foi à toa que a grande maioria dos linguistas portugueses e muitos brasileiros não cedeu a mal compreendidas motivações políticas na defesa da ortografia, da fonética e da etimologia do Português em que nos temos entendido, até agora, neste pequeno rectângulo do Sudoeste europeu. Tanto mais que, como é bem sabido, o Português falado e escrito no Brasil não vai parar a sua fortíssima dinâmica própria lá porque a classe política portuguesa assinou um "acordo" artificial que só prejudica a aprendizagem e o correcto domínio do Português de cá!
Público de 10.2.12

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