Fernando Pessoa
Para que serve a liberdade às plebes?
Para que serve a liberdade às plebes? Para que lhes serve, supondo, de resto, que elas a possam obter e usar dela?
As plebes são, por sua natureza, aquela parte da sociedade sobre quem incide, quer por divisão social, como a escravatura, quer por compulsão económica, o trabalho manual ou com ele relacionado, o trabalho do artífice. A que serve ao artífice a liberdade? O que [é] à plebe devido não é a liberdade, é a ausência de opressão, que é devida a todos, e o seu direito natural de homens. É esse o direito do homem; esse, e não a liberdade. A que se reduz esse direito? O de não haver mais ingerência na vida das plebes do que a natural; e a natural é a sua condição definida de escravos no tempo da escravatura; e a sua condição económica de compelidos ao trabalho quotidiano e manual, no tempo da chamada concorrência (da concorrência universal).
Para que serve qualquer das fórmulas de liberdade à plebe? Para que lhe serve a liberdade de pensamento? De que serve a liberdade de pensamento a quem, por sua condição social, não pode pensar? De resto, é essa uma liberdade que se lhes pode conceder até certo ponto.
Que haja uma liberdade que permita ao escravo contemporâneo a sua libertação, que modernamente cada qual faz por si próprio, e não por concessão de um dono — isso é justo. Ao homem da plebe compete a liberdade da oportunidade, mas uma liberdade apertada, restrita, para que só os deveras dignos dela possam passar-lhe pelas malhas.
Outra coisa é a liberdade de pensamento, aplicada aos que podem usar dela. Como, porém, fazer a distinção?
1917?
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação.
Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
- 259.
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