- as imagens das colunas laterais têm quase todas links ..
- nas páginas 'autónomas' (abaixo) vou recolhendo posts recuperados do 'vento 1', acrescentando algo novo ..

14/07/15

"A cegueira dos vencedores"

retirado do blogue Alegria Breve
13/07/2015 

por  Bruno Carapinha
 
A Oresteia é a única das trilogias de tragédias gregas sobreviventes até aos nossos dias. A obra de Ésquilo narra a história da hybris (o orgulho e arrogância face aos deuses) de Agamémnon, o vencedor da Guerra de Tróia, e a forma como isso desencadeia uma sucessão de vinganças e tormentos sem possibilidade de apaziguamento. A mulher de Agamémnon mata-o, para vingar o sacrifício da filha que este fez por exigência dos deuses – e por ambição; Orestes, o filho de ambos, é dilacerado por ter de matar a mãe para vingar o pai (a sua obrigação moral e social); após o matricídio, as Erínias, deusas cruéis, perseguem e torturam Orestes até que Atena intervém para sujeitar o caso a um tribunal (o primeiro que é criado). Perante um impasse do próprio tribunal, Atena impõe a salvação de Orestes – uma medida para a paz. As Erínias são então transformadas em Euménides, divindades benévolas que velam pela Justiça e já não pela Vingança.

Agamémnon tinha várias faltas, mas só perdeu o apoio dos deuses quando os desafiou. Só os deuses podiam usar tecidos púrpura: os homens, mesmo os poderosos, são inferiores às forças que não conhecem ou dominam. Com sedução e elogios, a mulher convence-o a pisar os tecidos de púrpura. A atitude é arrogante e o rei sabe-o, mas mesmo assim avança, convencido do seu poder. E, quando eu pisar estes tecidos de púrpura, destinados aos deuses, que nenhum olhar de inveja me fira! Pouco depois, o rei morre às mãos da mulher.

Lembrei-me desta história e socorri-me da minha Oresteia rabiscada ao de leve desde as aulas dos Profs. Victor Jabouille e José Pedro Serra da FLUL enquanto seguia o drama desenrolado em Bruxelas à vista de todos os europeus. A trilogia ilustra lições básicas da vida em comunidade: um vencedor não deve usar de desmesura com os vencidos; a destruição dos outros desencadeia as condições para a nossa destruição; só a justiça pode trazer paz duradoura e evitar o ciclo destrutivo da ordem imposta pelos poderosos – que o são sempre apenas de forma provisória.

A Grécia está sitiada. Os bancos estão à beira do colapso. O BCE faz política discriminatória, recusa o financiamento do sistema bancário e precipita a crise no país. O governo da Grécia está a ceder em toda a linha, apesar de saber que os ultimatos dos credores feitos hora a hora trarão ainda maior devastação ao país e não constituem um programa de recuperação económica que viabilize o pagamento da dívida acumulada. A radicalidade da posição alemã e dos cães de fila está a acelerar a crispação no Conselho Europeu, tornando claro que as condições para a manutenção do projecto europeu estão a ser profundamente afectadas. Até os média generalistas dão conta que a Alemanha está a exigir a capitulação completa, incluindo o confisco de activos no valor de 50 mil milhões de euros. O governo grego está também a ser obrigado a implementar medidas legislativas em 3 dias (três!), impondo ao seu Parlamento as reformas que o directório europeu impuser… 

O euro vai acabar, isso não me parece já evitável. As consequências do processo vão atingir-nos seriamente. Mesmo que nos faltasse a solidariedade para com os Gregos, para com os vencidos, o próprio espírito de auto-preservação deveria alertar-nos. Num debate da ATTAC sobre a crise do Euro em 2010, falei do risco de guerra no caso de recusa do pagamento das dívidas. Mas não esperei ver esse cenário tão rapidamente. Esmagar a Grécia não provoca uma guerra entre os dois países; o confisco exigido é já um acto de guerra. E vai alertar outros povos da Europa para a necessidade de uma grande coligação anti-germânica em breve.

É bastante evidente que os chefes de governo apostam num de dois cenários: ou se expulsa a Grécia do Euro, ou se expulsa o Syriza do espectro político. Se correr bem, até se conseguem os dois cenários ao mesmo tempo. Não nos confundamos: o problema não é o primado da economia sobre a política, como nos andam a vender há muito tempo. O que está em cima da mesa é política pura: trata-se de um directório europeu, dominado por um dos países, a fazer um golpe de Estado num Estado soberano, esmagado pela dívida e pela guerra económica. Para a Grécia, só há duas soluções: o caos interno e a fome; a fome e o inevitável caos.

O ultimato e a humilhação nunca foram modo de resolver questões; foram sempre boas formas de criar problemas bem mais graves. Eu sempre achei que havia forças suficientes no continente para resistir e evitar o desastre. Mas o que se está a passar em Bruxelas é tão extremado; o confisco do património grego é tão radical; toda esta cimeira é tão surreal – que os alemães não podem esperar um bom desfecho. Os loucos dos Habsburgos encaminham-se alegres para o precipício – novamente! – e arrastam-nos desta vez com eles.

Chama-se hybris. Os gregos sabem há 3.000 anos que os espíritos temerários e insolentes desencadeiam as forças que os destroem. Os europeus parecem não aprender. Mas eu tenho vergonha, mais do que medo. Eu não quero fazer parte de uma Europa de pirataria e de patifaria.

Sem comentários: