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06/08/13

A história de uma farsa

no Sol-Sapo 
30 de Julho, 2013 

por Luís Osório
Feitiços Raivosos, de Telmo Vaz Pereira


Todos os actores conheciam o guião e, desde o primeiro minuto, desempenharam-no como se não soubessem como ia terminar a peça que levaram à cena. 

Num contexto de profunda crise da cultura portuguesa, a começar pelas artes cénicas, é de aplaudir o esforço e talento dos protagonistas – isto para não falar de um guião que, não tendo sido escrito por Aaron Sorkin, autor de Os Homens do Presidente, foi eficaz e mobilizou atenções de um país desesperado. 

Recapitulo. 

Paulo Portas bateu irrevogavelmente com a porta. Maçado com o ‘autismo’ do primeiro-ministro que, em vez de o consultar, escolheu Maria João Luís para substituir o ministro das Finanças que se demitira dias antes. O líder do partido mais frágil da coligação, farto de não ser tratado da forma como julga merecer, disse que já não jogava mais – com o pormenor de ter levado a bola para os outros meninos também não poderem brincarem. 

Ao que se sabe, alguns dos militantes mais destacados do CDS, na maior parte dos casos talentos descobertos ou potenciados por Portas, vieram a terreiro, com orgulho pátrio, afirmar que a posição apenas ao líder pertencia; o Presidente da República podia comprar-lhes outra bola porque, por eles, o jogo continuava. 

Este pontapé de saída superou as melhores expectativas dos críticos. Surpreendeu a audiência, deixou o país em suspenso, a Europa de sobreaviso e os cobradores de fraque preparados para voos picados. A acrescentar a este tanto, assistíamos à aparente derrocada de Paulo Portas dentro de um partido que pensávamos o trataria com água de rosas até ao fim dos dias. 

A partir daí os burocratas tomaram conta da acção – o espectáculo teve ainda assim momentos altos, mas o cunho de imprevisibilidade decaiu. 

O Presidente, Cavaco Silva, falou com todos e depois ao país: em Portugal propunha-se fazer o que o Rei Lear fizera na Grã-Bretanha. A Pátria precisava de ser salva e, como Shakespeare, ofereceu os destinos do país a Goneril, Regan e Cordélia, irmãs de sangue a quem pediu, como Lear, que lhe expressassem gratidão e amor aceitando uma solução a três. Foi bom. Eloquente e incisivo. Nos telejornais do dia, vários comentadores concluíram que, afinal, tínhamos Presidente. 

Pedro, Paulo e António (filhos de um Lear moderno e sem poder) aceitaram as recomendações de diálogo. E entraram em cena para cumprir o tempo previsto para a encomenda do Palácio de Belém. 

Dentro de cada um dos exércitos partidários o clima foi de violência pronta a explodir. Nas tropas de Pedro, antes da reunião da Comissão Nacional, prometia-se sangue e havia até quem exigisse a cabeça do Presidente numa bandeja – para evitar mais comoções cerebrais, Pedro Passos Coelho (Goneril) apareceu de surpresa e desempenhou o papel de domador de feras: tranquilos, pediu gravemente. 

No PS, os grandes senhores revoltaram-se contra a hipótese de Seguro (Cordélia) poder aceitar o canto da sereia de Cavaco (Lear). Se tal enormidade acontecesse, Mário Soares e outros generais socialistas, como o ex-inimigo Manuel Alegre, provocariam uma cisão nas fileiras socialistas – foi então que o coro gritou em espanto, ‘Soares pode sair, Soares pode sair, tragédia, tragédia’. 

Já no CDS, após incendiar as avenidas, Portas (Regan), remeteu-se ao silêncio, devolveu a bola e retomou o controlo aparente da situação. 

Os exércitos negociaram apenas para inglês ver. Passos enviou Jorge Moreira da Silva, Seguro escolheu Alberto Martins, Portas mandatou Mota Soares e até Cavaco quis que um seu oficial, David Justino, estivesse presente. Pela composição deste grupo de salvação nacional, percebeu-se que nada de relevante se iria decidir – todos estavam a cumprir a sua parte do trato e a empatar jogo. Concordarão que colocar aqueles homens juntos (respeitáveis cidadãos, diga-se) poderia servir para uma adorável e importante discussão acerca da Filosofia da Linguagem ou da importância da Lógica em Wittgenstein, nunca para a bocejante selva de números em que nos movemos. 

Mesmo assim, para que não existisse a tentação de tantos veneráveis cidadãos terem a tentação de se entender, Pedro chamou de urgência Maria João a uma reunião. A coisa estava a correr tão bem, com tantas leituras e ideias trocadas, quando a bonita senhora tratou de colocar as coisas no seu desagradável sítio. 

O Presidente voltou ao plano inicial. Entrou pela mesma porta. Fez a mesma pausa para beber água a meio do discurso. Elogiou tudo e todos pelo esforço e, por trás do pano, lavou as mãos do futuro. Se as coisas piorarem, a partir daqui, ninguém poderá dizer que não tentou. Essa é a sua leitura, a mesma de Pilatos. Foi, como ele, inteligente, matreiro e político. 

Pedro e Paulo podem dizer que tentaram, mas que o PS não quis o ónus da governação e recusou o apelo para fazer parte da solução. Ganharam tempo e mantêm-se ligados à máquina e à esperança. Já estiveram piores. 

António pode dizer ao país que tentou virar a cabeça dos que mergulharam o país numa tragédia. E deixa os seus adversários beberem da cicuta até ao último gole. Também precisa de tempo, seria uma chatice ter o poder agora. 

Partido Comunista e Bloco de Esquerda precisam que a tragédia continue. Quanto pior, melhor. Não por serem maus e comerem crianças ao pequeno-almoço, mas por acreditarem que a revolução só poderá chegar quando se chegar ao fundo dos fundos. Para eles, está bem. 

Todos estão contentes. E o país? Isso é outra coisa, isso é a realidade. 

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