Por Nuno Ramos de Almeida
publicado aqui em 14 Maio 2013
Os piores crimes são cometidos por funcionários diligentes que não fazem mais nada que cumprir ordens de forma acéfala. Vale para a guerra como para a austeridade.
Numa das mais célebres experiências de sempre da psicologia social, pensada pelo psicólogo Stanley Milgram, tentou-se analisar os mecanismos da autoridade e entender as razões que levaram tanta gente a obedecer a ordens que provocaram o massacre de milhões de pessoas durante o nazismo.
A chamada experiência de Milgram* começou em Julho de 1961, três meses depois de começar o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém. O dispositivo era simples: uma universidade angaria voluntários para um suposto estudo sobre o papel dos castigos na aprendizagem. Na sala está um cientista, um suposto voluntário a responder a perguntas, e a pessoa que realmente se sujeita à experiência tem como missão carregar num botão. Os dois primeiros são intervenientes combinados. Quando o “aluno” da cadeira falha uma resposta, o voluntário e sujeito da experiência recebe instruções para carregar num botão que provocaria um choque eléctrico. Os choques são supostamente crescentes com cada nova resposta errada, até níveis que, a serem verdade, poriam em perigo de vida o aluno. Este berra e finge desmaiar. Perante as dúvidas da pessoa que pressiona o botão, o alegado cientista, vestido com uma impecável bata branca, diz de uma forma fria: “A experiência deve continuar.” Perante o cenário, em que por causa de um estudo académico uma pessoa estaria a ser electrocutada até à morte, a maioria continua a executar as ordens do cientista de uma forma quase automática. São muito poucos aqueles que se insurgem e se recusam a provocar os choques eléctricos.
Ontem tive o privilégio de ver o filme sobre Hannah Arendt e o caso Eichmann. Para escândalo de muitos, a filósofa judia chega à conclusão que Eichmann era um homem normal. E que não existe um mal radical, ligado a uma anormalidade maléfica e tenebrosa; o mal é sempre excessivo, mas o dos nazis, como o responsável pelo programa de transporte dos judeus para os campos de concentração, é um mal feito por um funcionário burocrático mesquinho e cumpridor de ordens.
Segundo Arendt, a Eichmann “nunca ocorreu fazer o mal como princípio, como a Ricardo III. Tirando o seu interesse extraordinário pela sua carreira, não tinha nenhum móbil, e o carreirismo não é um crime. Não teria certamente assassinado o seu superior para lhe ficar com o lugar. Simplesmente nunca lhe passaram pela cabeça as consequências daquilo que fez...” O mal feito era um mal banal, cumprido por funcionários diligentes em horário de expediente.
As reacções ao texto de Hannah Arendt foram violentas porque as suas conclusões são muito mais assustadoras: o mal não é feito por seres diabólicos de excepção, é executado por pessoas comuns que no fim do dia vão cuidar dos filhos.
Para Hannah Arendt o mal não era radical, era excessivo. Ao qual tinha de se opor um bem radical para o conseguir travar. Uma desobediência que pudesse romper a textura do respeitinho e dos pequenos poderes. E isso vale para os dias de hoje. Quando aqueles que nas suas folhinhas de Excel calculam os cortes sem ver que ceifam vidas, é preciso que alguém lhes desobedeça. Eles dizem para seu sossego que não fazem mais que cumprir ordens de alguém, seja a troika seja um grande outro qualquer. Mas aquilo que fazem é espalhar um mal embebido na normalidade de quem cumpre ordens burocráticas, como se fosse uma praga de cogumelos, como exemplificava Arendt. É preciso opor-lhes o pensamento. E isso custa mais que obedecer. Mas só isso faz a diferença.
Nuno Ramos de Almeida
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Experiência da Obediência de Stanley Milgram
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