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07/09/12

o que eu teria gostado de escrever ao meu pai

- e o que chorei, choro ainda, ao ler esta carta .. Parabéns, Adriano, parabéns, Isabel. e obrigada..

recebido via e-mail


in Público, 6 de Setembro de 2012

Para o meu pai, que se chama Adriano Moreira


Nos 90 anos de Adriano Moreira, que hoje se comemoram, pedimos a Isabel Moreira, deputada independente do PS, que escrevesse sobre o seu pai. Ele, que foi ministro do Ultramar e presidente do CDS, é o homem da sua vida
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Adriano Moreira
Não envelhece quem envelhece ao nosso lado
Adriano Moreira

Pois não.
Sugeriram-me que escrevesse um texto sobre o Adriano Moreira, que completa agora 90 anos, sem que olhando os seus olhos jamais tivesse dito esse nome, porque o meu Adriano Moreira chama-se pai.

Difícil, por isso, escrever sobre quem é de certa forma de todos, mas é, em tantas coisas, só meu; difícil não abrir as portas de uma intimidade que me salva todos os dias, difícil agradecer, também aqui, para além da gratidão que expresso a um trasmontano que ecoa nas minhas escolhas, nas minhas alegrias, nas minhas dores, nas minhas palavras e nos meus silêncios.

Somos civilizacionalmente dados a datas, a marcos no tempo que passa, como que para o parar por uns instantes: os números redondos de aniversários são caso disso - 90 anos. O meu pai era igual aos 89 e será igual aos 110, mas faz 90 anos e por isso paramos um instante, como que para fazer uma inscrição da pessoa, do menino que veio da aldeia para estudar, filho de pais heróis e que teve a vida esplendorosa que não me cabe contar.

Isabel Moreira
Posso dar o testemunho do que o meu pai fez à minha vida, posso explicar melhor por que razão escrevi numa dedicatória que o meu pai é o homem da minha vida, posso explicar melhor como os princípios essenciais que norteiam a minha vida pública e privada foram bebidos daquele trasmontano, que é ansioso como eu, mas mais contido: limita-se a enrolar os polegares um no outro que subitamente são os do seu pai, o meu avô.

Se é verdade que a política rouba muito tempo à família, aconteceu-me interessar-me pelo fenómeno muito cedo e seguir o meu pai em comícios pelo país fora na campanha de 1987. Eu tinha 11 anos e queria saber tudo, o que tinha sido aquilo da moção de censura do PRD, por que é que era mau as eleições europeias e as nacionais serem no mesmo dia (voto útil), queria fazer sondagens pessoais, mas queria, sobretudo, ouvir. Durante essas eleições, e mais tarde, ouvi o meu pai defender o privilégio dos pobres.

Com 11 anos não entendia o significado total da reclamação, mas fui compreendendo que o combate à pobreza teria de estar sempre no topo da lista das obrigações da governação. Por isso percebi também o que era aquilo da esperança concreta - que de resto influenciou a minha tese de mestrado -, a exigência de direitos sociais concretizados: eis a habitação; eis a escola pública; eis os cuidados de saúde, etc..

Outro princípio que ficou gravado na minha carne foi o de que o voto útil só é útil para quem o recebe.

Esta moldura social e política era e é concretizada na forma como o meu pai vive a sua vida, o que me traçou - até com alguma violência - a certeza de que tudo o que somos e fazemos é ideológico.

Não se pode pregar contra o capitalismo selvagem e ter por moral uma vida de luxos exuberantes que nos diferenciem do outro. Daí a frase do meu pai, que terá aprendido do seu avô Valentim: "O que nos define é a maneira como vivemos a vida e não como ganhamos a vida".

Vendo o que o meu pai fez, faz e vai continuar a fazer com a sua vida pública e privada, recordando os princípios que enunciei e tantos outros, dou por mais simples concluir que o meu pai, essa palavra que persigo, norteou e norteia tudo o que toca de acordo com um princípio elementar de justiça.

Se isso faz dele uma espécie de oleiro do que procuro ser, há razões muito mais profundas para eu estar a escrever sobre o homem da minha vida. Elas estão espalhadas pelos livros que escrevi, as personagens estão sempre à procura do pai, e a mim aconteceu-me a circunstância de a referência masculina estável da minha vida que nunca quebrou uma palavra, que sempre me apoiou, não apesar de eu ser assim, mas sobretudo porque eu sou assim (chama-se amor, filha - diz-me), numa relação recíproca de reconhecimento da autenticidade da ideia que saia da boca do outro, foi o meu pai, que se chama Adriano Moreira.

A meu respeito escreve-se quase sempre a deputada independente do PS Isabel Moreira, filha do Professor Adriano Moreira. Às vezes com segundas intenções, mas não faz mal. A frase é, sem que o saiba quem a escreve, violentamente identitária.

Agora em discurso directo, obrigada, meu amor, parabéns, prometo plantar macieiras no dia seguinte ao dia pior da minha vida e não te esqueças disto, que um dia escrevi num sítio esquecido:

"Aprendi a sabedoria de dizer esta sou eu, sem medo, e queria que soubesses e sentisses que sou tão feliz na nossa ansiedade partilhada como o era após o jantar sentada no teu colo com a tua gravata gravada na minha face. Não há tempos díspares, portanto, entre nós, como um dia escreveram; há antes uma intensa proximidade, calhando apenas que eu falo mais porque conto com a tua prudência e porque sinto que te faz bem o choque emocional feito em verbo.

Sempre que nos sentamos a almoçar, observo-te reclamando toda a tua vida. Pareces-me pronto a explodir, digo. Mas quero explicar que é esse teu estado limite que te torna um ser com o rosto de que não prescindo à minha secretária. Escreves sobre o humanismo e a esperança que é sempre uma criança que nasce, mas no concreto da tua pele não foges, porque não podes, ao pessimismo que te assombra a visão do que esteve para ser e o acaso não permitiu ou do que simplesmente surge preto por mais que um poeta clame por claridade. É essa contradição remoída nos teus dedos que amo. Que faz de ti uma pessoa muito antes de seres um intelectual. E sei que essa dor sangra de uma ferida que se chama exigência. Hoje gostava que soubesses que sofro dessa ferida, dessa exigência violenta.

Não trocava a minha ansiedade e a dor dela pela calma feliz que tem o preço da não-reflexão.

O mesmo é dizer que gosto de ti sempre pronto a explodir".

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