No passado
sábado, horas antes das ruas portuguesas se encherem com os gritos de indignação
de centenas de milhares de manifestantes, o futurólogo americano Andrew Zolli
fazia no Centro Cultural de Belém uma conferência no âmbito do encontro Presente
no Futuro - Os Portugueses em 2030.
Zolli mencionou um estudo hoje
clássico do primatólogo holandês Frans de Waal, onde dois macacos, em jaulas
contíguas, são treinados para realizar uma dada tarefa, recebendo como
recompensa um pedaço de pepino. Os macacos fazem a tarefa repetidamente sem
problema. A dada altura, a recompensa muda: um dos macacos recebe na mesma um
pedaço de pepino, mas o outro recebe uma uva, um alimento que estes macacos
capuchinhos adoram. A reacção do outro macaco é de espanto e agitação e acaba
por atirar ao tratador com raiva o pedaço de pepino que lhe é dado. Quando a
cena se repete, o macaco pura e simplesmente entra em greve e deixa de realizar
a tarefa, recusando o pepino, furioso com o tratamento desigual.
A
experiência, que teve um enorme impacto no mundo da biologia e das ciências
sociais, sugere que o sentimento de justiça, de equidade, é um sentimento
natural, extremamente poderoso e com raízes muito anteriores às que a
civilização, a cultura ou a religião possam ter criado. Talvez mais
espantosamente ainda, em certas repetições desta experiência há casos em que o
próprio macaco que recebe as uvas se recusa a trabalhar se não houver equidade
no tratamento - numa demonstração de empatia e solidariedade que não pode deixar
de nos fazer pensar. E que poderia fazer pensar Pedro Passos Coelho ou Vítor
Gaspar para além dos seus clichés, caso o exercício os motivasse.
Vem
isto a propósito das manifestações de dia 15 e do sentimento que as provoca.
Parece evidente que a enorme dimensão das manifestações deve muito a uma
motivação egoísta, à defesa dos interesses individuais próprios dos cidadãos -
uma motivação totalmente legítima - e não escondo que me teria sentido mais
emocionado se tivesse visto manifestações desta dimensão perante os cortes no
RSI, os aumentos das taxas moderadoras na Saúde, os cortes no apoio a pessoas
com deficiências ou os cortes na educação, mesmo quando estas medidas iníquas
não nos afectam a todos. Mas o que acontece - e o que o Governo não percebe - é
que a indignação das pessoas não se deve apenas aos cortes em si, mas à sua
iniquidade, à sua injustiça - bem exemplificada no caso da TSU. Deve-se à falta
de vergonha com que se cortam os salários dos trabalhadores para os entregar aos
patrões; ao descaramento com que se taxam os rendimentos do trabalho para poupar
os do capital; à imoralidade com que se corta o RSI mas se permite que as
empresas mais ricas do país deixem de pagar impostos em Portugal e inscrevam
(legalmente mas desonestamente) as suas empresas na Holanda; à abjecção com que
se corta nos subsídios de férias e Natal de assalariados e pensionistas mas se
conferem em discretos despachos essas mesmas benesses aos filhos-família
contratados pelos gabinetes ministeriais; à crueldade com que se fecham serviços
e se despedem professores mas se continua a permitir a especulação bolsista sem
freio; à desfaçatez com que se mantêm as rendas das empresas dos amigos do
Governo mas se aumenta a energia e os transportes públicos; à desonestidade com
que se defende a concorrência e o mercado mas se garantem lucros vitalícios sem
risco às empresas das PPP; à subserviência com que se defende o dever sagrado de
pagar ágios a bancos parasitas mas se recusa qualquer obrigação de protecção dos
cidadãos mais frágeis; à vileza de recusar negociar o memorando da troika
mas rasgar sem hesitar o contrato social que está na base da sociedade e da
democracia.
As manifestações de dia 15 vieram sem dúvida dizer que há um
limite para os sacrifícios e que ele já foi atingido. Mas vieram principalmente
dizer que o limite para a iniquidade foi ultrapassado há muito. Há situações
onde as sociedades conseguem levar os seus sacrifícios a extremos muito mais
dolorosos do que os que vivemos hoje em Portugal, mas quando conseguem fazer
isso é porque o fazem em nome de um objectivo definido e partilhado por todos, é
com base num princípio de solidariedade que não admite excepções, é quando
existe uma confiança total na justiça da distribuição dos sacrifícios. Este
Governo não tem - nunca teve - essa confiança. Até a pobreza pode ser suportada
com dignidade, mas nenhum homem pode aceitar a injustiça, porque isso seria
garantir um futuro de escravidão para os seus filhos. O que os portugueses
começaram a dizer é que não serão escravos.
Esquecer que existe um forte
e animal sentimento de justiça em todos os homens e mulheres é apenas um dos
seus pecados. O pecado que todos os fanáticos como Vítor Gaspar cometem, o
pecado que todos os políticos servis como Pedro Passos Coelho cometem, porque
pensam que a força dos fortes os protegerá sempre da fúria dos fracos. Mas isso
nunca acontece para sempre.
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