Pesquisando sobre António Perez Metelo, que acabei de ouvir no telejornal e cuja análise sobre 'iniquidade fiscal' me irritou q.b. (opinou que não adiantava cortar nos salários dos administradores do sector empresarial do Estado - Carris, por ex.) acabei por descobrir um Mendes de Carvalho para mim até agora desconhecido, numa notícia de 1973 sobre a acção da DGS no tempo do Estado Novo (ver) . Aí se referia uma estrofe de um poema seu (transcrito abaixo) cortada pelo lápis azul da censura.
A estrofe censurada vai a azul .. e, na minha modesta opinião, o poema vale quase só por ela ..
.
Arte de Bem Beber
Há quem beba às refeições
e quem beba a toda a hora
os que bebem para esquecer
escolha tipo colheita
ou apenas a marca
Há quem seja connoaisseur
como diz a minha prima
e saiba da boa casta
quem tenha língua apurada
para ácidos málicos láticos
claretes generosos adamados
e requintados bouquets
quem beba sem distinção
beba verde por maduro
e até branco por tinto
há quem viva pra beber
e quem não possa beber
ou beba vinagre azeite
Há velhas que bebem chá
outras só bebem garotos
garotas que bebem leite
bebem sumo de tomate
quem se mate por beber
uns que bebem só do fino
e alguns que bebem tudo
vampiros que bebem sangue
os que bem ódio e fel
ou mel vichy caracola
Há quem beba por remédio
quem não tenha outro remédio
quem sugue o suor dos outros
quem beba muito em segredo
afogue a tristeza em vinho
afogados bebem água
Há quem mame em várias tetas
quem fique a chuchar no dedo
também quem chupe nas ventas
quem beba por taça d’oiro
beba na concha da mão
quem beba tédio melancolia
morfina sicuta cocaína
cannabis sativa lindei
(quem beba o ar que respiras)
quem beba a vida
e morra de sede
in “Poemas de Ponta & Mola”, Mendes de Carvalho, Editorial Futura, 1975 - retirado daqui
*
Poeta, dramaturgo e novelista, Mendes de Carvalho (1927-1988), foi também na vida um homem de sete instrumentos, sempre muito próximo de grupos teatrais ("Casa da Comédia", "Teatro Estúdio de Lisboa e "Clube Palco"), orientou páginas literárias e colaborou em jornais e revistas literárias com poemas, artigos e ensaios sobre literatura e artes plásticas. Mas, passados treze anos sobre a sua morte, a poesia crítica e satírica de Mendes de Carvalho está hoje praticamente esquecida
ler mais: Mendes de Carvalho - uma poesia crítica e satírica (Serafim Ferreira, Crítico literário)
.
Sem comentários:
Enviar um comentário